O mal paralisa. Não é por outra razão que, na
descrição que faz de Satanás no Inferno, Dante o retrata como um ser que
abana eternamente as próprias asas, congelando, com esse movimento, o
rio Cócito, no qual se assenta, e que o prende, por estar congelado, na
imobilidade eterna.
Ainda da série “novas Cartas do Inferno”, em homenagem ao grande C. S. Lewis:
“Meu prezado diabinho aprendiz:
Quero começar lembrando a você que não é possível levar um ser humano
a escolher deliberadamente aquilo que ele próprio reconhece como mau. A
única liberdade real do ser humano é a de querer fazer o bem, e de
estar integralmente empenhado em consegui-lo; aliás, desconheço uma só
pessoa que não esteja empenhada em fazer o bem. O seu trabalho,
meu caro aprendiz de demônio, não está aí. Não há um só ser humano,
desde o mais santo dos santos até o mais abjeto dos criminosos
condenados, ou mesmo, digamos, o mais empolgado dos adoradores
satânicos, que não esteja buscando o bem. Buscar o bem não parece ser uma alternativa de deliberação frente a “buscar o mal”.
Não é possível aos humanos deliberar livremente em buscar o mal, em
fazer o mal. O mal não é uma coisa, como você já deveria saber, mas uma
ausência, uma carência, de um bem devido. Ora, se o mal não é uma coisa,
não pode ser objeto de escolha. O mal, por definição, é aquilo que
jamais pode ser objeto de escolha. Você, mesmo, só existe porque foi
criado por Deus (Argh!!), e a sua existência é um bem, embora a
sua atuação demoníaca se dê para o mal, exatamente porque se dirige a
fazer o ser humano escolher o bem aparente e não o bem real!
Aprenda, então, diabinho imbecil: a liberdade não se apresenta aos
humanos como uma ampla e irrestrita possibilidade de escolher igualmente
entre o bem e o mal. Trata-se de escolher, entre os diversos bens que lhe são propostos, aquele que é mais conveniente,
não só a cada momento, mas em conformidade com a sua vida, a sua
história, as suas opções pessoais fundamentais. Escolher entre os bens
reais e os bens aparentes! Qualquer ética, qualquer ordenamento
jurídico, consiste, em síntese, numa hierarquização de bens, e será tão
mais demoníaca quão mais colocar os bens aparentes à frente dos reais.
Note que não há decisão humana que não seja estritamente pessoal. E isto não numa dimensão egoísta, individualista: não há um “eu” humano que não esteja inserido num contexto social, relacional, qualquer. É claro que todos têm um ego, e disso não há dúvida; mas não há decisão pessoal humana que não envolva, em algum grau, o outro. Portanto, nesse exercício constante de liberdade, uma coisa une irremediavelmente a todos os humanos: eles todos estão necessariamente buscando o bem, e todas as suas decisões comprometem de algum modo a sua própria pessoa e caminhada, mas irremediavelmente comprometem também o outro e à própria coletividade.
Não há como fugir disso. Eis o que une a todos os humanos: a noção de
“bem” tem o sentido puro e simples de “Fim”. Qualquer um, portanto, que
age (no sentido voluntário da palavra “agir”), busca um fim para a sua
ação, ou simplesmente não age. Mesmo que a sua ação se apresente como
deliberadamente não-finalista, não há como escapar do fato de que, neste
caso, o fim da ação humana era, simplesmente, o de mostrar que é possível ao ser humano agir sem ter um fim:
o que é uma contradição em termos. Você tem que saber disso, se quiser
ser um diabinho minimamente competente. Fazer um ser humano escolher o
mal só é possível se você, de diabinho que é, souber se disfarçar em
“anjo de luz”, e apresentar um bem aparente como mais elevado que o bem
real.
Sei que pareceria chocante aos ouvidos humanos dizer que mesmo o mais
abjeto dos criminosos, ou o mais convicto dos adoradores satânicos,
está buscando o bem, porque, se age, age para um fim. Mas
façamos um exercício trivial de pensamento: digamos que exista algo como
o “Mal em si”, (sabemos que o mal moral em si existe, é é o nosso
chefão Satanás; mas mesmo ele foi criado por Deus como um anjo, e isso
é bom, por mais que nós, demônios, jamais possamos admitir
isto) e que se apresente assim de modo ostensivo aos seres humanos. Será
que ele acharia adoradores e cultuadores? Sim, é claro. Sabemos disso,
porque somos nós mesmos a promover este culto. Mas há aí uma sutiliza,
meu caro aprendiz: estes adoradores e cultuadores estariam, então,
declarando publicamente que cultuar o “Mal” é bom! Portanto, é sob a razão de bem que
eles cultuam o mal, porque há um fim na sua atividade de culto, ainda
que esse fim fosse simplesmente provar a inexistência de qualquer fim na
sua atividade. Nenhum ser humano poderia, ontologicamente falando,
declarar que é mau promover, cultuar e adorar o mal, e em seguida,
promover este mesmo culto. Como seria isto? Será que alguém diria: “é
mau cultuar o “Mal'” e em seguida iniciaria tal culto? Para isto, ele
teria que admitir que fazer o que é mau é bom, já que ele o
está fazendo por tê-lo escolhido, e que seu fim é provar que o mal é
mau. Mas aí ele já se estaria dando um fim, uma finalidade, e portanto,
perseguindo um bem. Entenda, estagiário do inferno, porque esta é a chave de qualquer sucesso que você possa almejar em levar os seres humanos ao mal!
Mesmo que você convencesse esta pessoa de que, uma vez que cultuar o
mal é pior ainda que, reconhecendo-o, não cultuá-lo, e que ele deveria
preferir escolher o pior, ela estaria numa contradição irremediável!
Neste caso, aquilo que é pior exerceria, segundo ela própria, uma força
de atração sobre sua escolha, e uma atração mais forte do que aquilo que
não é pior: mas, ao ceder a esta força, a pessoa estaria confessando
uma de duas coisas: ou 1) que é bom ceder a uma força de atração maior, pelo simples fato de ser maior, e aí ela volta a admitir que a procura do bem guiou,
portanto, a sua escolha, ou 2) que, diante da força irresistível que o
pior exerce sobre a sua vontade, ela não conseguiria escolher outra
coisa senão este pior. Neste último caso, então, ela
simplesmente confessa que acredita que o ser humano não tem nenhuma
escolha perante o mal, e portanto não é livre, e portanto todo o
problema da liberdade é falso, porque o mal sempre se impõe de qualquer
jeito, e nós somos meros escravos do mal. Negando o valor do fim como
bem, ele teria que negar a própria liberdade humana. E, se o faz, exime-se de qualquer responsabilidade por
ter feito o próprio mal. Isto frustra o nosso trabalho demoníaco,
pequeno imbecil! Sim, porque se há algum valor na mera conduta de
escolher, perante a conduta de não escolher, então ela tem que admitir
que escolher é melhor que não escolher, o que a traz de volta à inevitabilidade do bem como intrínseco à própria questão da liberdade humana. Mas se opior pode ser objeto de escolha, e ela não quer admitir que escolher é melhor que não escolher, então ela não pode escolher o mal sem contradizer a si própria.
Se o pior puder de algum modo se impor ao ser humano, no
sentido de afastar da conduta humana qualquer fim deliberado, a pior
forma que ele pode apresentar, para nós diabos, é a da paralisia completa de qualquer decisão,
porque para sair de qualquer impasse, seria preciso que a pessoa
escolhesse, e ela não poderia fazê-lo sem imediatamente declarar, pelo
próprio ato de fazê-lo, que aquilo que foi objeto de sua escolha de
alguma forma é mais digno de escolha do que a alternativa de não
escolher nada. Neste sentido, o único resultado do culto a um suposto
“Mal”, um culto satânico em si mesmo, seria a total paralisia de todos
os eventuais adoradores do mal. Isto não nos interessa! Preste atenção!
Não é por outra razão que, na descrição que faz de Satanás no
Inferno, Dante o retrata como um ser que abana eternamente as próprias
asas, congelando, com esse movimento, o rio Cócito, no qual se assenta, e
que o prende, por estar congelado, na imobilidade eterna. O exato
movimento de asas que poderia lançá-lo no voo é o exato movimento que
congela o rio Cócito, prendendo-o imóvel. Somente a falta de sentido
desse círculo vicioso poderia carregar uma descrição tão precisa do mal
quanto a que faz o poeta Dante. Que posso dizer? Não deixe jamais que um
ser humano leia Dante, meu estagiário infernal!
E como fazemos, então? A velha Serpente, nosso chefe, já nos deu a receita: na impossibilidade de fazer o ser humano escolher o mal sem imediatamente paralisá-lo no paradoxo do rio Cócito, faça com que ele acredite que o bem está em qualquer lugar, menos em (arghh) Deus: faça-o comer do fruto da Árvore da Ciência do Bem e do Mal, e considerar-se no direito de estabelecer o bem a partir de suas próprias convicções – o que significa dizer, transformar a si mesmo, seus sentimentos, seus pensamentos, no único fim que vale a pena perseguir. Transformar-se em Deus!
E para que ele não se sinta como um grande egoísta, inunde-o de sentimentos agradáveis cada vez que ele eleger um bem menor no lugar de colocar Deus em primeiro lugar. E inclusive que ele considere-se magoado cada vez que alguém diga que, agindo assim, ele pode não estar buscando o melhor fim, e portanto, o maior bem,
para a sua vida, cada vez que ele escolher o que lhe é agradável em vez
do que o leva a Deus. Ora, quando ele estiver convencido de que o
prazer, o agradável, é o único critério para as suas escolhas, a pessoa
se encherá de uma convicção fortíssima de que deve combater com todas as
suas forças todos os estraga-prazeres religiosos que o impedirem, ou
aos seus semelhantes, de conduzir sua vida no rumo do meramente
agradável, do prazeiroso, do bem-estar, em nome de um suposto (para nós)
fim (=bem) que tem objetividade, quer dizer, o Deus verdadeiro (argh, que os demônios me perdoem por dizer isto!). É a única forma de criar um combatente anticristão. Ele se sentirá muito altruísta, muito desapegado por combater contra Deus em prol do direito irrestrito ao prazer. E seu trabalho estará completo, meu pequeno aprendiz.”
Criando um militante anticristão. | ZENIT - O mundo visto de Roma
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