Mário Saturno*
E Jesus disse: se tiverdes fé, como um grão de mostarda, direis a esta montanha: transporta-te daqui para lá, e ela irá; e nada vos será impossível (Mt 17,20). Estas fortes palavras de Jesus Cristo é a força que faz o fraco levantar, mas também é a ruína do forte arrogante.
Não nos esqueçamos que o diabo tentou Jesus, conforme Mateus (4,5-7): o demônio colocou-o no ponto mais alto do templo e disse-lhe: se és Filho de Deus, lança-te abaixo, pois está escrito: Ele deu a seus anjos ordens a teu respeito; proteger-te-ão com as mãos, com cuidado, para não machucares o teu pé em alguma pedra (Sl 90,11s). Disse-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o Senhor teu Deus (Dt 6,16).
Pois é, uma fé torta, que despreza a Medicina, é responsável pela morte de muitos, especialmente crianças. É o que motivou o Dr. Paul A. Offit, um pediatra da Universidade da Pensilvânia, que resolveu detalhar casos em um livro entitulado “Bad Faith”, cuja ideia significa fé ruim, mas a tradução literal mantendo a inversão do substantivo parece-me mais apropriada. No livro, o autor lamenta o uso da oração como um substituto para o cuidado pediátrico padrão.
O livro ainda não está disponível no Brasil em português. Abigail Zuger escreveu uma interessante resenha no “New York Times” (em inglês também) e que julgo interessante destacar alguns pontos. O tom do livro é de irritação do começo ao fim, não com a religião em si, mas para aqueles que a usam erradamente.
Os adultos são livres para seguir ou não os procedimentos médicos, porém as crianças são reféns. No livro, estão relatados casos de crianças saudáveis que morreram de infecções bacterianas tratáveis, diabéticos que morreram sem insulina, outras tinham um dos cancros curáveis da infância e morreram sem tratamento.
Talvez o caso mais chocante fosse o de uma menina de dois anos que comeu um pequeno pedaço de banana e começou a engasgar... Seus pais, urgentemente, convocaram uma reunião de oração enquanto a criança... ficou azul e morreu.
Para o Dr. Offit, esses casos são de abuso contra indefesos. E não há lei para punir isso. Nos Estados Unidos, a liberdade de religião é uma garantia fundamental. Provavelmente, na maioria dos países é assim, as crianças ficam desprotegidas.
O autor explora no livro sua visão sobre a relação entre religião ocidental e doença. No Antigo Testamento, a doença foi geralmente considerada castigo pelo pecado ou, como no caso de Jó, um teste de fé. O Novo Testamento eliminado essas metáforas, introduzindo uma visão mais moderna da doença, desprovida de moral, muitas vezes simplesmente como o resultado de má sorte.
O mais interessante é que o cristianismo forjou alianças profundas com a prática médica ortodoxa, haja vista que foi nos mosteiros medievais que surgiram os fundamentos do hospital moderno. Mas a cura pela Fé ganhou e manteve a popularidade enorme.
Em alguns países onde não existem essas isenções legais para fé, como o Canadá e Grã-Bretanha e, desde 2011, o Estado do Oregon, as mortes evitáveis de crianças medicamente tratáveis simplesmente desapareceu. Mas, na maior parte dos Estados Unidos, essas mortes evitáveis continuam a ocorrer.
Não custa lembrar que superstição, como prática de rituais de sorte, não é fé, mas um pecado contra Deus.
(*)Mario Eugenio Saturno (cienciacuriosa.blog.com) é Tecnologista Sênior do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e congregado mariano.
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