O suicídio de Kate Barry (filha da atriz Jane Birkin) chocou-me, como me chocam todos os suicídios. Mas tratando-se de uma figura pública que não vivia propriamente na pobreza, o seu suicídio torna-se ainda mais incompreensível.
Podemos
compreender (embora não aceitar), por exemplo, que um sem-abrigo que
vive em um estado de pobreza extrema se suicide: neste caso, os
problemas de sobrevivência e de auto-conservação são objetivos,
concretos e muitas vezes quase incontornáveis; muita gente que se
suicida comete esse acto por uma questão de quase impossibilidade de
sobrevivência física e biológica, e não porque ande psicologicamente
frustrada em relação à sua vidinha.
Naturalmente
que podemos sempre especular sobre as razões de Kate Barry (de 46
anos!) para acabar com a sua vida, e a especulação é, nestes casos,
má-conselheira. Mas há alguns fatos objetivos que caracterizam este
caso que incluem o trajecto de vida da pessoa em causa: por exemplo, só
aos 29 anos (1996) Kate adotou uma profissão, a de
jornalista-fotógrafa. Até essa idade passou por uma série de problemas,
desde o internamento hospitalar aos 17 anos por uso de drogas duras,
até curas prolongadas nos alcoólicos anónimos. Portanto, Kate foi
alguém que começou a sua vida “a solo” — e independente da mãe — já
muito tarde.
Depois,
há outro fato objetivo que marcou este caso e que marca a atual
cultura europeia: o mito da juventude, especialmente nas mulheres
porque elas têm um ciclo biológico diferente do dos homens. Vivemos
numa cultura que julga o belo por fora, exterior. A beleza exterior é
importante como manifestação estética, mas no ser humano existe uma
beleza interior que quase toda gente, mais ou menos, tem. O ser humano
não é apenas uma obra-de-arte em que o acerto estético é a ortodoxia e que, sendo sensual, comove pela sua ausência: é também e sobretudo uma realidade espiritual que comove com a sua presença1 e independentemente da sua idade cronológica.
Vivemos
em um tempo em que, nos meios sociais das elites sociais e culturais,
se torna difícil lidar com o fracasso, seja este grande ou pequeno —
porque mesmo que o fracasso seja o naturalmente inerente ao estatuto
ontológico do ser humano, tornou-se insuportável na nossa cultura
atual. Para evitar o fracasso, a pessoa torna-se socialmente predadora;
e quando não tem endogenamente uma estrutura espiritual predatória,
surge então o sentimento do fracasso que inunda e absorve o espírito. O
predador é rei. O circuito desta irracionalidade cultural é biunívoco:
a irracionalidade transita entre o coletivo da elite, por um lado, e o
indivíduo da elite, por outro lado, e essa irracionalidade
transformou-se em um paradigma cultural por força da ação dos me®dia que
essas mesmas elites controlam — e pelo fenômeno cultural mimético de Trickle-down, tão bem descrito, já no princípio do século XX, por Georg Simmel.
A
noção de “fracasso humano” pode ser medida por valores que apontam
para o Absoluto. Por isso, o fracasso humano é sempre relativo, é
sempre de menor importância quando comparado com a dimensão infinita da
realidade. Mas, na cultura atual, o relativo tornou-se absoluto; o
indivíduo das elites, em geral, “bloqueou”: não consegue ver um palmo à
frente do nariz. Não se trata de um problema de falta daquela
inteligência mensurável por um qualquer teste estatístico, mas antes um
problema de embotamento espiritual grave que nenhum grau de QI, por
mais elevado que seja, pode suplantar. As elites atuais estão
gravemente doentes, do ponto de vista espiritual: e o pior é que são
incapazes de reconhecer a sua doença, assim como um psicótico agudo
nega sempre que tem um problema; e essa maleita espiritual das elites
propaga-se pelo resto da sociedade como fogo em palheiro.
Nota:
1. Parafraseando Nicolás Gómez Dávila.
fonte: Mídia Sem Máscara - A grave doença espiritual das elites
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