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O especialista em nada


BRASIL — Em mais um gesto de ruptura com a inteligência humana, o jornalismo brasileiro provou – com exaustiva documentação e abundância de provas – que diploma nenhum é capaz de substituir o coeficiente mínimo de honestidade e bom senso que se espera de quem tem por dever informar.
Estou a cada dia mais convencido de que a burrice é uma força física. Há pessoas cuja burrice é tão densa que você quase a pode tocar. E o pior: burrice assim gera campo gravitacional. Isso explica o fato de que jornalistas ligeiramente alfabetizados contem com leitores tão pouco preocupados com o que leem. Nenhuma novela da TV Globo faz o mal que certos ‘diários’ brasileiros fazem. Tirem as crianças da frente da banca de jornais.
Uma consulta rápida a qualquer catecismo que estivesse à mão e o dublê de jornalista aprenderia que a Igreja nunca disse, nem oficial nem extraoficialmente, que papas não podem pecar.
O dogma em questão é o da infalibilidade: quando o papa se pronuncia solenemente, ex cathedra, sobre tema estrito de doutrina e moral, o Espírito Santo há de ser o fiador, por assim dizer, dessa decisão. Neste sentido muito preciso, o papa é infalível.
Tais pronunciamentos não são feitos o tempo todo e, de maneira geral, tendem a apenas confirmar ou elucidar aspectos doutrinais já estabelecidos pela Igreja. Em muitas outras questões – científicas, econômicas, culturais – as declarações dos papas são passíveis de erro e não precisam ser acatadas necessariamente (muito embora a prudência recomende ao católico ouvi-las de boa vontade).
O texto oficial:
891«Desta infalibilidade goza o pontífice romano, chefe do colégio episcopal, por força do seu ofício,quando, na qualidade de pastor e doutor supremo de todos os fiéis, e encarregado de confirmar na fé os seus irmãos, proclama, por um acto definitivo, um ponto de doutrina respeitante à fé ou aos costumes [...]. A infalibilidade prometida à Igreja reside também no corpo dos bispos, quando exerce o seu Magistério supremo em união com o sucessor de Pedro», sobretudo num concílio ecuménico (425) Quando, pelo seu Magistério supremo, a Igreja propõe alguma coisa «para crer como sendo revelada por Deus» (426) como doutrina de Cristo, «deve-se aderir na obediência da fé a tais definições»(427). Esta infalibilidade abarca tudo quanto abarca o depósito da Revelação  divina»
Infalibilidade, portanto, nada tem a ver com impecabilidade. Papas podem pecar. Papas costumam pecar. A história registra – e a Igreja não o nega – que o mistério da santidade nem sempre acompanha a pessoa do pontífice romano.
Não bastasse a incorreção no mérito da notícia – ele está confundindo o leitor comum que não tem por hábito checar esse tipo de informação –, a sumidade deriva, do erro crasso, ilações ainda mais grosseiras. Como o papa admitira que também peca, o desinformante pretende ver aí mais uma ruptura do bispo de Roma com a tradição da Igreja Católica. Mais uma ruptura. Gostaria de saber quais teriam sido as outras. A relativa informalidade? Alguma ênfase em aspectos sociais, nos primeiros pronunciamentos? Pois bem: ficamos agora sabendo que se o hábito não faz o monge, há de fazer o herege. Ah, jornalista: esse especialista em nada.
Não pretendo defender a fé que professo – e o faria, de bom grado, se fosse o caso. Pouco importa se o repórter não é católico, se os leitores não são católicos, se o dono d’O Globo não é católico. No entanto, importa que a imprensa informe corretamente e preserve alguma honestidade intelectual. Mas antes fosse só burrice.
Dias atrás, Emmanuel Santiago, ateu e, por isso mesmo, insuspeito, nos chamou a atenção, ele mesmo um tanto perplexo, para determinada notícia da Folha de SP, veiculada pelo portal UOL. Mais exatamente: para o ‘desenho’ da página e a maneira com que tal informação se relacionava com as imagens correspondentes.
“Rafael Falcón, dessa vez até eu tenho de dar o braço a torcer”.

Há de ser muito ingênuo quem acredite na mera casualidade, na randômica justaposição de assuntos e imagens. “Apresentador da BBC diz ter abusado de 13 menores”. Ao lado do texto, o dito apresentador. Integrada ao texto, em meio ao corpo do texto, a foto de Bento XVI e Francisco. Isso, definitivamente, não é coincidência.
Sabemos todos que jornais são diagramados – das cores ao tamanho das fontes, da distribuição dos textos nas páginas às imagens – de modo que o leitor seja conduzido a determinada notícia que se quer destacar ou, ao contrário, que tenha sua atenção desviada de algo que importaria noticiar, mas que por razões políticas, ideológicas ou comerciais não interessa à editora – ainda que, para a manutenção das aparências, tenha de ser veiculado de algum modo.
O portal globo.com destaca: “Chuva dá trégua, e multidão já curte a Parada Gay na Av. Paulista; acompanhe”

E o que acompanhamos é a foto de dois homossexuais paramentados com o respeito costumeiro pela fé alheia e em conformidade com o art.208 do CP, no que se refere ao crime de ultraje a culto e obscurantismos tais: “(...) vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena – detenção, de 1(um) mês a 1(um) ano, ou multa”. Havia centenas, milhares de ‘pessoas LGBT’ na manifestação. Os escolhidos foram o ‘papa’ e o ‘frei’.
Legalismo? De forma alguma. Apenas a ironia evidente de que, se os homossexuais querem fazer valer seus direitos (de expressão, por exemplo), se querem reconhecimento jurídico, estatal, institucional, nada mais razoável que respeitem os direitos já existentes. Não existem direitos absolutos.
Qualquer ordenamento jurídico é sempre uma estrutura fragilíssima, iminentemente contraditória, que depende de arranjos e articulações sutis e prudenciais para que não venha abaixo de todo. Atentar violentamente contra a ordem jurídica ao mesmo tempo em que se quer ser reconhecido e aceito por essa mesma ordem é tão inteligente quanto escapar do afogamento puxando os próprios cabelos.
São três exemplos recentes, mas há muitos outros. Fala-se, entre os conservadores, de uma guerra cultural em curso. Liberais, em geral, não admitem essa ideia. Tendem a acreditar que guerras são feitas por estados contra estados, ou entre grupos uniformemente organizados, com uma ideologia clara, suficientemente homogênea e por motivos muito mais econômicos e políticos que quaisquer outros.
É um modo de se ver as coisas. Mas talvez seja um modo muito particular e perigosamente otimista de não se ver as coisas. A verdade é que não se fazem mais guerras como antigamente. E me pego com saudades de quando o mundo era dividido entre barbudos e não barbudos – e isso era bom.


Publicado no site Ad Hominem.

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