|
BRASIL
— Em mais um gesto de ruptura com a inteligência humana, o jornalismo
brasileiro provou – com exaustiva documentação e abundância de provas –
que diploma nenhum é capaz de substituir o coeficiente mínimo de
honestidade e bom senso que se espera de quem tem por dever informar.
Estou
a cada dia mais convencido de que a burrice é uma força física. Há
pessoas cuja burrice é tão densa que você quase a pode tocar. E o pior:
burrice assim gera campo gravitacional. Isso explica o fato de que
jornalistas ligeiramente alfabetizados contem com leitores tão pouco
preocupados com o que leem. Nenhuma novela da TV Globo faz o mal que
certos ‘diários’ brasileiros fazem. Tirem as crianças da frente da banca
de jornais.
Uma
consulta rápida a qualquer catecismo que estivesse à mão e o dublê de
jornalista aprenderia que a Igreja nunca disse, nem oficial nem
extraoficialmente, que papas não podem pecar.
O dogma em questão é o da infalibilidade: quando o papa se pronuncia solenemente, ex cathedra,
sobre tema estrito de doutrina e moral, o Espírito Santo há de ser o
fiador, por assim dizer, dessa decisão. Neste sentido muito preciso, o
papa é infalível.
Tais
pronunciamentos não são feitos o tempo todo e, de maneira geral, tendem
a apenas confirmar ou elucidar aspectos doutrinais já estabelecidos
pela Igreja. Em muitas outras questões – científicas, econômicas,
culturais – as declarações dos papas são passíveis de erro e não
precisam ser acatadas necessariamente (muito embora a prudência
recomende ao católico ouvi-las de boa vontade).
O texto oficial:
Infalibilidade, portanto, nada tem a ver com impecabilidade.
Papas podem pecar. Papas costumam pecar. A história registra – e a
Igreja não o nega – que o mistério da santidade nem sempre acompanha a
pessoa do pontífice romano.
Não
bastasse a incorreção no mérito da notícia – ele está confundindo o
leitor comum que não tem por hábito checar esse tipo de informação –, a
sumidade deriva, do erro crasso, ilações ainda mais grosseiras. Como o
papa admitira que também peca, o desinformante pretende ver aí mais uma ruptura do bispo de Roma com a tradição da Igreja Católica. Mais uma ruptura.
Gostaria de saber quais teriam sido as outras. A relativa
informalidade? Alguma ênfase em aspectos sociais, nos primeiros
pronunciamentos? Pois bem: ficamos agora sabendo que se o hábito não faz
o monge, há de fazer o herege. Ah, jornalista: esse especialista em
nada.
Não
pretendo defender a fé que professo – e o faria, de bom grado, se fosse
o caso. Pouco importa se o repórter não é católico, se os leitores não
são católicos, se o dono d’O Globo não é católico. No entanto,
importa que a imprensa informe corretamente e preserve alguma
honestidade intelectual. Mas antes fosse só burrice.
Dias
atrás, Emmanuel Santiago, ateu e, por isso mesmo, insuspeito, nos
chamou a atenção, ele mesmo um tanto perplexo, para determinada notícia
da Folha de SP, veiculada pelo portal UOL. Mais exatamente: para o ‘desenho’ da página e a maneira com que tal informação se relacionava com as imagens correspondentes.
“Rafael Falcón, dessa vez até eu tenho de dar o braço a torcer”.
Há de ser muito ingênuo quem acredite na mera casualidade, na randômica justaposição de assuntos e imagens. “Apresentador da BBC diz ter abusado de 13 menores”. Ao lado do texto, o dito apresentador. Integrada ao texto, em meio ao corpo do texto, a foto de Bento XVI e Francisco. Isso, definitivamente, não é coincidência.
Sabemos
todos que jornais são diagramados – das cores ao tamanho das fontes, da
distribuição dos textos nas páginas às imagens – de modo que o leitor
seja conduzido a determinada notícia que se quer destacar ou, ao
contrário, que tenha sua atenção desviada de algo que importaria
noticiar, mas que por razões políticas, ideológicas ou comerciais não
interessa à editora – ainda que, para a manutenção das aparências, tenha
de ser veiculado de algum modo.
O portal globo.com destaca: “Chuva dá trégua, e multidão já curte a Parada Gay na Av. Paulista; acompanhe”
E o que acompanhamos é a foto de dois homossexuais paramentados com o respeito costumeiro pela fé alheia e em conformidade com o art.208 do CP, no que se refere ao crime de ultraje a culto e obscurantismos tais: “(...) vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena – detenção, de 1(um) mês a 1(um) ano, ou multa”. Havia centenas, milhares de ‘pessoas LGBT’ na manifestação. Os escolhidos foram o ‘papa’ e o ‘frei’.
Legalismo?
De forma alguma. Apenas a ironia evidente de que, se os homossexuais
querem fazer valer seus direitos (de expressão, por exemplo), se querem
reconhecimento jurídico, estatal, institucional, nada mais razoável que
respeitem os direitos já existentes. Não existem direitos absolutos.
Qualquer
ordenamento jurídico é sempre uma estrutura fragilíssima, iminentemente
contraditória, que depende de arranjos e articulações sutis e
prudenciais para que não venha abaixo de todo. Atentar violentamente
contra a ordem jurídica ao mesmo tempo em que se quer ser reconhecido e
aceito por essa mesma ordem é tão inteligente quanto escapar do
afogamento puxando os próprios cabelos.
São três exemplos recentes, mas há muitos outros. Fala-se, entre os conservadores, de uma guerra cultural
em curso. Liberais, em geral, não admitem essa ideia. Tendem a
acreditar que guerras são feitas por estados contra estados, ou entre
grupos uniformemente organizados, com uma ideologia clara,
suficientemente homogênea e por motivos muito mais econômicos e
políticos que quaisquer outros.
É um modo de se ver as coisas. Mas talvez seja um modo muito particular e perigosamente otimista de não se ver as coisas.
A verdade é que não se fazem mais guerras como antigamente. E me pego
com saudades de quando o mundo era dividido entre barbudos e não
barbudos – e isso era bom.
Publicado no site Ad Hominem.
Comentários
Postar um comentário