A capacidade do homem comum e vulgar, em geral, de discernir o futuro mais próximo por intermédio da intuição de “probabilidades pesadas”, não existe no gnóstico devido a uma fé metastática que o possui e controla.
Ao estudar os textos em prosa publicados de Fernando Pessoa — porque eu não os li, apenas: estudei-os, literalmente —, cheguei à conclusão de que não concordo com a mundividência dele em mais de 50%, embora também reconheça que ele foi mudando substancialmente de opinião à medida que avançava na idade, e não posso deixar de lhe reconhecer muita originalidade e mesmo genialidade na forma como construiu o seus raciocínios, mesmo que, a espaços, ideologicamente opostos entre si.
E mesmo com a formação do partido de Hitler na década de 1920, e com a sua ascensão ao poder a partir do início da década de 1930, Fernando Pessoa — que faleceu em 1935 — não conseguiu prever ou intuir o horror da II Guerra Mundial que teve o seu início em 1939 [apenas quatro anos após a sua morte]. E mais: Fernando Pessoa, que criticou duramente D. Manuel I pela expulsão dos judeus, e sendo ele próprio descendente de judeus, sempre foi um germanófilo de boa cepa, defendendo por exemplo a posição dos alemães na I Guerra Mundial. O que diria Fernando Pessoa dos seus ilustres alemães se pudesse ter assistido ao horror do holocausto nazi?
O caso de Fernando Pessoa e a sua relação próxima com os alemães é sintomático da dificuldade de alguém, vivendo as circunstâncias do seu presente, poder prever sequer o futuro mais imediato. Karl Popper fala-nos nas “possibilidades pesadas” de acontecimentos futuros, comparando-as com a probabilidade quase certa de nos sair um determinado número em um jogo de dados viciado: se o peso de um dos lados dos dados estiver viciado com chumbo, a “probabilidade pesada” é a que o número viciado nos calhe sistematicamente em sorte.
Mas Fernando Pessoa não conseguiu intuir qualquer “probabilidade pesada” em relação à capacidade dos seus admiráveis alemães em exterminar os seus queridos judeus: morreu convencido de que o partido nazi alemão seria apenas uma insignificante corruptela germânica de Mussolini. E a razão pela qual Fernando Pessoa não conseguiu intuir um futuro tão próximo do seu presente, prende-se com a sua fé metastática gnóstica — a Gnose. Fernando Pessoa era um gnóstico.
Um gnóstico não é alguém que não tenha um senso firme da realidade. Pelo contrário, no caso de Pessoa, ele tinha um conhecimento imenso da História, e fazia análises políticas do seu presente muito bem fundamentadas e com um raro sentido crítico. O problema de Fernando Pessoa não era o passado e o presente, que ele conhecia muito bem: o problema dele era o futuro e a sua obsessão com o futuro.
E é com o futuro que os gnósticos se enredam e se vêem com “os burros na água”, porque perderam o sentido do senso-comum do homem vulgar. A capacidade do homem comum e vulgar, em geral, de discernir o futuro mais próximo por intermédio da intuição de “probabilidades pesadas”, não existe no gnóstico devido a uma fé metastática que o possui e controla.
Com o advento da revolução francesa e do Positivismo, entramos todos na Era da Gnose, o tempo de predomino cultural e social dos novos gnósticos, em que se misturou a Gnose da antiguidade tardia, com a nova Gnose cientificista. É assim, por exemplo, que Fernando Pessoa consegue ser um acérrimo defensor da ciência positivista e, simultaneamente, anunciar o seu místico apoio à maçonaria, por um lado, e por outro lado defender a veracidade absoluta das profecias do Bandarra e de Nostradamus — para além de se dizer, ele próprio, membro da Ordem dos Templários que, como sabemos, foi o esteio medieval da maçonaria operativa.
Portanto, a Gnose é no presente, como foi no passado, a confirmação absoluta do poder que Prometeu concedeu ao Homem.
No plano da ciência moderna, a Gnose passa pela afirmação da validade do cientismo. E na tipologia da religião moderna, a Gnose passa, por um lado, pela preponderância quase absoluta da imanência [seja nas religiões políticas, como por exemplo o marxismo, seja na imanência da Cabala ou do ocultismo, teosófico ou outro], herdada da tradição gnóstica antiga ou adotada pelos Templários; e, por outro lado, passa pela validação de uma visão maniqueísta do mundo — maniqueísmo entendido no sentido da religião de Mani, em que o Bem e o Mal são duas forças equivalentes — que adoptou de Heraclito a complementaridade dos opostos. Tudo isto se pode verificar, com uma cristalina clareza, nos textos em prosa de Fernando Pessoa.
A partir do momento em que o gnóstico moderno — seja ele cientista ou um místico imanente [o que em termos da Gnose vai dar no mesmo] — encara o futuro a partir de uma perspectiva prometeica — segundo o conceito de Protágoras do “homem como medida de todas as coisas” — e imanente — na medida em que prepondera nele o determinismo absoluto em relação à realidade, ou o absolutismo tirânico do Destino segundo Fernando Pessoa —, a sua capacidade natural de intuir o futuro próximo das “probabilidades pesadas” fica altamente comprometida. E esta é uma das razões, por exemplo, por que a maçonaria [imanência] tem falhado rotundamente em quase todas as “apostas de futuro” que fez no século XX.
O século XX pode ser classificado como a Era em que as apostas dos gnósticos modernos no futuro redundaram em hecatombes humanitárias indizíveis. Tentando “forçar” o futuro em determinado sentido, os eventos entraram em retroacção, e a imprevisibilidade que é característica do futuro traiu os sonhos e as utopias traduzidos pela fé metastática dos novos gnósticos, com consequências catastróficas para a humanidade.
Corolário: o problema do nosso tempo, e da nossa crise, não é só de 2008: o problema vem de trás, dos Idos do século XVII. E enquanto não tivermos todos, embora obviamente uns mais do que outros, consciência do problema complexo que nos trouxe a Nova Gnose, não iremos sair do delírio interpretativo colectivo que obnubila o espírito do Homem moderno.
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