Por Marco Antônio Ribeiro Tura*
No
momento em que nós do Ministério Público da União nos preparamos para
atuar contra diversas instituições de ensino superior por conta do
número mínimo de mestres e doutores, eis que surge (das cinzas) a velha
arenga de que o formado em Direito é Doutor.
A
história, que, como boa mentira, muda a todo instante seus elementos,
volta à moda. Agora não como resultado de ato de Dona Maria, a Pia, mas
como consequência do decreto de D. Pedro I.
Fui
advogado durante muitos anos antes de ingressar no Ministério Público.
Há quase vinte anos sou Professor de Direito. E desde sempre vejo
“docentes” e “profissionais” venderem essa balela para os pobres
coitados dos alunos.
Quando
coordenador de Curso tive o desprazer de chamar a atenção de (in)
docentes que mentiam aos alunos dessa maneira. Eu lhes disse, inclusive,
que, em vez de espalharem mentiras ouvidas de outros, melhor seria
ensinarem seus alunos a escreverem, mas que essa minha esperança não se
concretizaria porque nem mesmo eles sabiam escrever.
Pois bem!
Naquela
época, a história que se contava era a seguinte: Dona Maria, a Pia,
havia “baixado um alvará” pelo qual os advogados portugueses teriam de
ser tratados como doutores nas Cortes Brasileiras. Então, por uma
“lógica” das mais obtusas, todos os bacharéis do Brasil, magicamente,
passaram a ser Doutores. Não é necessária muita inteligência para
perceber os erros desse raciocínio. Mas como muita gente pode pensar
como um ex-aluno meu, melhor desenvolver o pensamento (dizia meu jovem
aluno: “o senhor é Advogado; pra quê fazer Doutorado de novo,
professor?”).
1) Desde já saibamos que Dona Maria, de Pia nada tinha. Era Louca mesmo! E assim era chamada pelo Povo: Dona Maria, a Louca!
2)
Em seguida, tenhamos claro que o tão falado alvará jamais existiu. Em
2000, o Senado Federal presenteou-me com mídias digitais contendo a
coleção completa dos atos normativos desde a Colônia (mais de quinhentos
anos de história normativa). Não se encontra nada sobre advogados,
bacharéis, dona Maria, etc. Para quem quiser, a consulta hoje pode ser
feita pela Internet.
3) Mas digamos
que o tal alvará existisse e que dona Maria não fosse tão louca assim e
que o povo fosse simplesmente maledicente. Prestem atenção no que era
divulgado: os advogados portugueses deveriam ser tratados como doutores
perante as Cortes Brasileiras. Advogados e não quaisquer bacharéis.
Portugueses e não quaisquer nacionais. Nas Cortes Brasileiras e só! Se
você, portanto, fosse um advogado português em Portugal não seria
tratado assim. Se fosse um bacharel (advogado não inscrito no setor
competente), ou fosse um juiz ou membro do Ministério Público você não
poderia ser tratado assim. E não seria mesmo. Pois os membros da
Magistratura e do Ministério Público tinham e têm o tratamento de
Excelência (o que muita gente não consegue aprender de jeito nenhum). Os
delegados e advogados públicos e privados têm o tratamento de Senhoria.
E bacharel, por seu turno, é bacharel; e ponto final!
4)
Continuemos. Leiam a Constituição de 1824 e verão que não há “alvará”
como ato normativo. E ainda que houvesse, não teria sentido que alguém,
com suas capacidades mentais reduzidas (a Pia Senhora), pudesse editar
ato jurídico válido. Para piorar: ainda que existisse, com os limites
postos ou não, com o advento da República cairiam todos os modos de
tratamento em desacordo com o princípio republicano da vedação do
privilégio de casta. Na República vale o mérito. E assim ocorreu com
muitos tratamentos de natureza nobiliárquica sem qualquer valor a não
ser o valor pessoal (como o brasão de nobreza de minha família italiana
que guardo por mero capricho porque nada vale além de um cafezinho e
isto se somarmos mais dois reais).
A
coisa foi tão longe à época que fiz questão de provocar meus adversários
insistentemente até que a Ordem dos Advogados do Brasil se pronunciou
diversas vezes sobre o tema e encerrou o assunto.
Agora retorna a historieta com ares de renovação, mas com as velhas mentiras de sempre.
Agora o ato é um “decreto”. E o “culpado” é Dom Pedro I (IV em Portugal).
Mas o enredo é idêntico. E as palavras se aplicam a ele com perfeição.
Vamos enterrar tudo isso com um só golpe?!
A
Lei de 11 de agosto de 1827, responsável pela criação dos cursos
jurídicos no Brasil, em seu nono artigo diz com todas as letras: “Os que
frequentarem os cinco anos de qualquer dos Cursos, com aprovação,
conseguirão o grau de Bachareis formados. Haverá tambem o grau de
Doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos
que se especificarem nos Estatutos que devem formar-se, e só os que o
obtiverem poderão ser escolhidos para Lentes”.
Traduzindo
o óbvio. A) Conclusão do curso de cinco anos: Bacharel. B) Cumprimento
dos requisitos especificados nos Estatutos: Doutor. C) Obtenção do
título de Doutor: candidatura a Lente (hoje Livre-Docente, pré-requisito
para ser Professor Titular). Entendamos de vez: os Estatutos são das
respectivas Faculdades de Direito existentes naqueles tempos (São Paulo,
Olinda e Recife). A Ordem dos Advogados do Brasil só veio a existir com
seus Estatutos (que não são acadêmicos) nos anos trinta.
Senhores.
Doutor é apenas quem faz Doutorado. E isso vale também para médicos, dentistas, etc, etc.
A
tradição faz com que nos chamemos de Doutores. Mas isso não torna
Doutor nenhum médico, dentista, veterinário e, mui especialmente,
advogados.
Falo com sossego.
Afinal,
após o meu mestrado, fui aprovado mais de quatro vezes em concursos no
Brasil e na Europa e defendi minha tese de Doutorado em Direito
Internacional e Integração Econômica na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.
Aliás, disse eu: tese de
Doutorado! Esse nome não se aplica aos trabalhos de graduação, de
especialização e de mestrado. E nenhuma peça judicial pode ser chamada
de tese, com decência e honestidade.
Escrevi
mais de trezentos artigos, pareceres (não simples cotas), ensaios e
livros. Uma verificação no sítio eletrônico do Conselho Nacional de
Pesquisa (CNPq) pode compravar o que digo. Tudo devidamente publicado no
Brasil, na Dinamarca, na Alemanha, na Itália, na França, Suécia,
México. Não chamo nenhum destes trabalhos de tese, a não ser minha
sofrida tese de Doutorado.
Após anos
como Advogado, eleito para o Instituto dos Advogados Brasileiros (poucos
são), tendo ocupado comissões como a de Reforma do Poder Judiciário e
de Direito Comunitário e após presidir a Associação Americana de
Juristas, resolvi ingressar no Ministério Público da União para atuar
especialmente junto à proteção dos Direitos Fundamentais dos
Trabalhadores públicos e privados e na defesa dos interesses de toda a
Sociedade. E assim o fiz: passei em quarto lugar nacional, terceiro
lugar para a região Sul/Sudeste e em primeiro lugar no Estado de São
Paulo. Após rápida passagem por Campinas, insisti com o Procurador-Geral
em Brasília e fiz questão de vir para Mogi das Cruzes.
Em nossa Procuradoria, Doutor é só quem tem título acadêmico. Lá está estampado na parede para todos verem.
E
não teve ninguém que reclamasse; porque, aliás, como disse linhas
acima, foi a própria Ordem dos Advogados do Brasil quem assim
determinou, conforme as decisões seguintes do Tribunal de Ética e
Disciplina: Processos: E-3.652/2008; E-3.221/2005; E-2.573/02;
E-2067/99; E-1.815/98.
Em resumo,
dizem as decisões acima: não pode e não deve exigir o tratamento de
Doutor ou apresentar-se como tal aquele que não possua titulação
acadêmica para tanto.
Como eu costumo matar a cobra e matar bem matada, segue endereço oficial na Internet para consulta sobre a Lei Imperial.
Os
profissionais, sejam quais forem, têm de ser respeitados pelo que fazem
de bom e não arrogar para si tratamento ao qual não façam jus. Isso
vale para todos. Mas para os profissionais do Direito é mais séria a
recomendação.
Afinal, cumprir a lei e
concretizar o Direito é nossa função. Respeitemos a lei e o Direito,
portanto; estudemos e, aí assim, exijamos o tratamento que
conquistarmos. Mas só então.
____________________________
(*)
jurista. Membro vitalício do Ministério Público da União. Doutor em
Direito Internacional e Integração Econômica pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Mestre em Direito Público e Ciência Política pela
Universidade Federal de Santa Catarina. Professor Visitante da
Universidade de São Paulo. Ex-presidente da Associação Americana de
Juristas, ex-titular do Instituto dos Advogados Brasileiros e ex-titular
da Comissão de Reforma do Poder Judiciário da Ordem dos Advogados do
Brasil.
Postado por posgraduando
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