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A “caetanização”, ou a essência da intelectualidade brasileira





Que a situação educacional e intelectual do Brasil não é das
melhores já é sabido. Para ser honesto, segundo índices e testes
internacionais, ela é mesmo das piores. As causas são tantas e tão
emaranhadas que é impraticável persegui-las aqui. No entanto, há um
epifenômeno dessa situação deplorável cuja onipresença sufocante – e
justamente por isso – é, ao mesmo tempo, obstinadamente ignorada.

Para
sumarizar tal processo, ainda que de maneira informal, costumo
batizá-lo a partir de um de seus máximos expoentes: o âmbito público de
debate de ideias sofre, no país, de uma síndrome ainda e sempre renovada
de “caetanização”. Não pretendo me concentrar aqui na análise da figura
arquetípica do “pseudointelectual de miolo mole”, que já há anos foi
denunciada por sujeitos do calibre de José Guilherme Merquior (o autor
do epíteto anterior) e Bruno Tolentino. Mas pode ser útil compreender um
tanto das causas e do processo que se repete incessantemente.


décadas o Brasil padece de uma falta tremenda de grandes expoentes
intelectuais ou científicos. Que eles existam, escondidos aqui e ali, de
nada adianta e só serve para exemplificar meu ponto, que consiste
exatamente no fato de que tais exceções são, do ponto de vista do debate
público, absolutamente irrelevantes. Essa falta de quórum é causa de
uma das duas marcas definitórias da caetanização: a automática e
imediata promoção de certos indivíduos de visibilidade pública inegável à
esfera dos intelectuais. Aqui pouco importa a definição que se queira
dar a essa classe, bastando apenas apontar seu efeito principal: a
disponibilidade e a abertura subserviente dos meios de comunicação para
que tais sujeitos nos brindem com suas opiniões sobre a mais variada
pletora de temas e problemas, de economia e política a artes e mecânica
quântica.

Nada contra a liberdade de expressão ou mesmo a
participação dessas figuras na vida pública mais ampla, como cidadãos
que são. O fenômeno que apontei seria apenas risível, se não fosse o
segundo de seus caracteres distintivos: a trasladação instantânea do
prestígio e sucesso alcançados em uma área específica para todo e
qualquer assunto ou questão dos quais esses baluartes possam porventura
tratar. O sucesso da música, da novela, da exposição; os gols feitos na
rodada, ou a mais remota hipótese de perseguição durante a ditadura
operam como uma espécie de toque de Midas espiritual sobre as faculdades
intelectivas, que converte tudo o que é dito ou escrito não em ouro,
mas em análise respeitável e a priori abalizada.

Não se pode
ignorar a identificação entre sucesso e credibilidade, assim como a
transferência de méritos de uma área não para outra que lhe seja
adjacente, mas para todas. Isso é sintoma evidente do estado avançado da
carência nacional de referências nos mais diversos campos. Tudo seria
menos lamentável se o motivo fosse apenas uma falta de espaço ou a
simples perseguição contra essa ou aquela posição, em vez da mais
completa falta de exemplares e da consequente falta de parâmetros de
comparação. E as mídias – velhas e novas – continuam transformando
letristas ou músicos em poetas; atores e atrizes em economistas e
cientistas políticos; jornalistas em pensadores. Se tiver um mínimo
pendor para falar de maneira um tanto incompreensível, o sortudo poderá
alçar os píncaros, tornando-se um “livre-pensador” ou filósofo. E não
interessa se alguém mais preparado lhes corrigir ou contradisser;
afinal, todos sabem que não existe esse negócio de alguém saber mais que
outro, sobretudo se o outro for um medalhão “caetanizado”.

A não
atentarmos a tempo, esse fenômeno será a substância primeira de toda a
atividade intelectual do país. Se o leitor acha suspeito o que digo,
dar-lhe-ei o golpe de misericórdia. Ou não.









Gabriel Ferreira,
mestre em Filosofia pela PUC-SP e doutorando na mesma área, foi visiting
scholar na Hong Kierkegaard Library, St. Olaf College (EUA).






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