Cesar Alberto Ranquetat Júnior*
A situação do sistema educacional brasileiro é no mínimo preocupante. Os dados estatísticos, as reportagens em jornais e na televisão, as inúmeras pesquisas e os testes internacionais nas mais diversas áreas do conhecimento demonstram explicitamente a decadência intelectual e cultural que devasta a sociedade brasileira. Diante deste quadro assombroso precisamos, antes de tudo, sondar as “raízes do mal” e tomarmos outros rumos, pois como frisava o crítico literário Otto Maria Carpeaux, o destino intelectual das nações depende fundamente da qualidade das universidades. Seguem algumas experiências pessoais, pistas, reflexões e proposições que podem contribuir para este debate.
Lembro-me, quando cursava a faculdade de Direito, de minha atitude respeitosa e de sincera admiração pelos (poucos) professores dedicados ao seu ofício de educar. Impressionava-me com aqueles que desfilavam em suas aulas erudição e vasta cultura científica e humanística, bem como paciência e sensibilidade no trato com o aluno. Eram eles a perfeita expressão do verdadeiro mestre, do homem dotado de lucidez intelectual, do sábio de outrora. Tratavam-se de figuras modelares que ainda servem para mim como uma luz inspiradora e orientadora em meio ao caos, à mediocridade e à estupidez característicos do nosso tempo.
O professor, o mestre, o educador, era visto em épocas passadas como uma espécie de sacerdote; seu papel e sua atividade revestiam-se de um caráter sacramental, sua função era de ordem espiritual. Conforme demonstra o historiador das ciências Georges Gusdorf, a função do professor na modernidade guarda semelhanças com o papel do xamã, do mago, do curandeiro nas culturas primitivas. Eram estes os depositários das tradições sagradas, os mestres dos rituais de iniciação. Era papel deles assegurar a continuidade da vida social pela transmissão dos saberes e “segredos” que lhe servem de base. Desse modo, o mestre, o verdadeiro professor, é aquele que inicia o neófito na vida adulta, no longo e tortuoso caminho da construção da personalidade. Ele é como um “artesão” que forja a si mesmo, edifica sua própria individualidade para que então, num segundo momento, possa dedicar-se inteiramente na árdua tarefa de transmitir “as armas e ferramentas” para que os alunos, “discípulos”, conheçam a si próprios e assim se tornem senhores de seu universo interior.
A relação entre o mestre e seus aprendizes é marcada pela necessidade da criação de liames, laços afetivos e cognitivos. É uma relação de mútua dependência que se funda no confronto e no diálogo face a face, num contato duradouro e íntimo. O verdadeiro professor é aquele que conduz seus discípulos na direção da conquista de suas próprias vocações, acendendo na alma dos alunos a chama imorredoura da busca pela sabedoria. Esta dimensão iniciática da função docente é ressaltada por Gusdorf: “A palavra do mestre é uma palavra mágica: um espírito desperta ao apelo de outro espírito; pela graça do encontro uma vida foi mudada. Não que essa vida deva daqui para frente devotar-se a imitar a alta existência que, num dado momento, cruzou e iluminou a sua. Uma vida mudou, não à imagem da outra vida que a visitou, mas à sua própria e singular semelhança. Jazia na ignorância e passou a conhecer-se e pertencer-se, a depender unicamente de si mesma, a sentir-se responsável por sua própria realização”. Quão distantes estamos deste ideal de maestria, de algum modo a função docente perde seu halo de sacralidade e, por conseqüência, a autoridade professoral definha.
É bastante preocupante e entristecedor ver como, atualmente, muitos alunos portam-se no ambiente acadêmico. Diante de professores preocupados com o conhecimento e a sabedoria, perfilam-se atitudes quase sub-humanas, caracterizadas pela total passividade, indiferença e até mesmo desrespeito. Atitudes que sinalizam para o predomínio de um tipo humano pueril, infantilizado e imaturo. A mudança ocorrerá apenas quando o aluno tomar a dura decisão de comprometer-se realmente, de corpo e alma, com o desenvolvimento intelectual, deixando de lado esta atitude egoísta e letárgica.
O professor, por sua vez, encontra-se sufocado por uma miríade de atividades burocráticas e administrativas, acossado pela lógica produtivista da “fabricação em massa” de papers, e por uma obsessão especializante que o conduz a um estado de “miopia intelectual”. Como aprimorar seus conhecimentos, expandir seu universo de consciência e adquirir alta cultura se praticamente hoje o professor não mais dispõe de tempo para o ócio? Importa ressaltar aqui o sentido original e etimológico da palavra ócio, para evitar mal entendidos. Esta expressão deriva do latim otium que significava para os antigos romanos o tempo dedicado à atividade intelectual, à vida interior, à ocupação com as artes, à ciência, à filosofia e ao lazer em geral. O ócio opunha-se ao negócio, do latim nec-otium, que relacionava-se às atividades de subsistência, ao trabalho. A expressão escola, por seu turno, deriva do termo grego scholé, que significava justamente o ócio em sua acepção original. A escola, bem como o ambiente acadêmico e universitário, era visto pelos “antigos” como o espaço onde os indivíduos deixavam de lado suas ocupações rotineiras e triviais para ocuparem-se com a reflexão, o estudo e a busca da verdade. Conforme explica o cientista político e educador inglês Michael Oakeshott, a idéia da escola e da universidade é de um lugar à parte, onde os herdeiros de uma cultura tomam contato com a sua herança moral e intelectual. É neste ambiente único onde por meio do estudo são criados e cultivados os hábitos da atenção, concentração, exatidão, coragem, paciência e reconhecimento da excelência, quer no pensamento, quer na conduta.
Agora, a pergunta que faço é a seguinte: como desenvolver virtudes éticas e intelectuais e fazer do ambiente escolar e universitário um local devotado ao conhecimento e à reflexão em salas abarrotadas de alunos? Estudo e atenção exigem silêncio, calma e serenidade, e não a agitação e o barulho perturbador que se costuma verificar em salas de aula com um número excessivo de alunos.
Diante deste quadro declina e cada vez mais se torna escassa a figura modelar e paradigmática do verdadeiro mestre. Este perturbante problema de nossa época já foi perfeitamente apontado há algumas décadas atrás pelo filósofo espanhol Julián Marías em um brilhante artigo intitulado O Respeito à Universidade; asseverava ele: “Cada vez que vejo mais de perto professores universitários, pondo de lado sua competência científica, que pode ser considerável, surpreende-me a freqüência com que pertencem a um tipo humano que em nada se parece com o que se costumava entender por ‘intelectual’. São mais semelhantes aos chamados executivos, ou a técnicos ou administradores. Têm pressa — o que não significa forçosamente que façam muito; não parecem interessar-se por nada que não tenha relação muito direta com seus trabalhos; não se lançam avidamente em busca de alguma idéia atraente; não dão impressão de prazer — ainda que seja um prazer tenso e doloroso — ao escrever (e provavelmente ao ensinar). Será possível, nessas condições, contagiar os estudantes com o entusiasmo das disciplinas intelectuais? Será fácil despertar neles sua vocação? O exercício do pensamento — essa operação humana que consiste em perguntar-se pelas coisas e procurar entendê-las — poderá florescer com tais pressupostos, em instituições estreitamente utilitárias, sem luxo vital, em suma, prosaicas?”
Palavras proféticas, verdadeiras e duras. O fato inconteste é que a proliferação tumoral de atividades burocráticas e meramente formais, o número excessivo de disciplinas, a avaliação do professor pelo número e a quantidade de artigos produzidos são coisas que colaboram decisivamente para o declínio intelectual do professor, para seu embrutecimento moral, e para a perda de sensibilidade para questões e temas de ordem superior. O reflexo disto é a péssima formação moral e cultural de boa parte dos alunos, que redunda na reprodução de valores e idéias que fomentam a desordem espiritual da sociedade moderna e a própria barbarização do homem. Diante desse quadro, cabe restaurar o papel do professor como um “agente de civilização”. Segundo Oakeshott, cabe a ele, principalmente, aliviar os seus alunos da servidão imposta pelos sentimentos, emoções, idéias e crenças dominantes, não através da doutrinação e do proselitismo ideológico, mas tornando possível aos seus alunos uma progressiva aproximação com a totalidade de sua herança cultural.
Por fim, ressalto que a culpa por tal estado de coisas, não é apenas dos alunos, dos professores, dos coordenadores de cursos e reitores, mas é de todos nós. Todos temos responsabilidade pela degradação moral e intelectual de nossa época, e para isto só há uma solução: uma profunda e radical revolução cultural que parte do centro do nosso ser. É preciso primeiro ordenar a nossa alma, através do cultivo do intelecto e das virtudes morais, para que, a partir dela, possamos irradiar, de forma muito parcial e limitada, novos e “arcaicos” valores que possam de algum modo despertar homens adormecidos. Paideia – educação, para os gregos – era a “arte de virar (periagoge)”, uma mudança de direção, uma torção radical, a adoção de uma nova atitude diante da existência, ativando a capacidade de discernir o essencial do acessório, o perene do transitório. Ensinar não é, assim, informar sobre coisas e treinar e aperfeiçoar determinadas habilidades específicas, mas formar homens maduros, responsáveis, com a mente cultivada, ampla e aberta à totalidade do real. Precisamos voltar a ler e estudar os clássicos gregos, que mostravam o que é realmente a educação e a formação integral do homem.
(*)Doutor em Antropologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); professor de Ciências Humanas na Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA)/Campus Itaqui.
fonte: Revista Vila Nova
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