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Êxodo? Deuses e Reis



Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira
Presidente do Centro Dom Vital
Thiago Cabrera
Membro do Centro Dom Vital


A longa tradição de filmes bíblicos,
assim como o conhecimento amplamente difundido da figura de Moisés, não
permite que atribuamos as falhas de roteiro do novo filme de Ridley
Scott, segundo argumento corriqueiro, à ignorância religiosa. Trata-se
de algo mais: uma opção racionalista com finalidade política. Este mais,
contudo, é um menos. Comecemos, pois, pelo que falta: da ambientação
aos personagens principais.
Vamos, pois, ao setting.
Deixando de lado toda a beleza das regiões da Andaluzia, onde o filme
foi rodado, o diretor opta pelo lúgubre. Acerta em escolher vielas e
cubículos para construir uma atmosfera que corrobore sua linha de
pensamento centrada na ideia da luta dos hebreus como luta meramente
política, com táticas de guerrilha ou de terror. Portanto, a ênfase
recai nas agruras físicas, no sofrimento material, no ambiente inóspito,
na sujeira, na poeira.
Christian Bale está no papel principal.
Seu antagonista, Ramsés, é interpretado por Joel Edgerton. O primeiro
até convence do ponto de vista da caracterização física do personagem,
contudo, nada representa da psicologia ou da espiritualidade do grande
patriarca. A razão da descaraterização espiritual do personagem está no
roteiro: o ator não tinha muito que fazer. Ramsés não passa de
caricatura, personagem raso, sem nuanças, primitivo e, certamente não
representa o grande líder egípcio. Os coadjuvantes, em geral, conseguem
desenvolver melhor seus personagens, justamente porque não estão no foco
dos roteiristas. Menção especial a Ben Kingsley e a John Turturro.
Os personagens. Falta uma ideia
clara sobre a figura de Moisés. O líder hebreu, como já foi observado
pela crítica especializada, no momento decisivo de sua vida, não passa
de um chefe guerrilheiro. Seu enfrentamento com Ramsés II, um mero
problema de ressentimento familiar.
A racionalização das intervenções
divinas em favor de seu povo, como as pragas e, sobretudo, a passagem a
pé enxuto pelo Mar Vermelho, proporcionam um naturalismo estéril cujo
mérito está em sequestrar a sensibilidade do espectador.
O povo hebreu, que algum protagonismo
haveria de ter num filme que trata de sua libertação, desaparece nos
logaritmos dos efeitos computacionais que fracassam, como de costume, na
busca de compensar a pobreza dramática. Extenuados estamos dos
exércitos binários, desses espectros tecnológicos deslocados,
especialmente em filmes de época.
Diferentemente do que deveria ser o
retrato dessa figura histórica, o patriarca, símbolo da libertação
espiritual da humanidade, Scott concede à mentalidade corrente da
desconstrução dos heróis e dos símbolos para favorecer não se sabe bem o
quê.
O parágrafo conclusivo do estudo de
Gregório de Nissa sobre a vida de Moisés oferece-nos um bom contraste
com o que podemos ver na caricatura de Scott. Merece ser citado
integralmente para a nossa meditação:
“Portanto, como nosso propósito era saber em que consiste a perfeição
da conduta virtuosa, creio, pelo que dissemos até aqui, que descobrimos
esta perfeição. É hora de que te voltes, homem generoso, para o modelo,
e transportes para a tua própria vida aquilo que a contemplação
espiritual dos acontecimentos históricos nos mostrou: de ser reconhecido
por Deus como seu amigo e de realmente o ser. Porque aí está realmente a
perfeição, não mais de abandonar a vida de pecado por temor do castigo à
maneira dos escravos, nem de realizar o bem na esperança de
recompensas, traficando com a vida virtuosa numa mentalidade
interesseira e calculista, mas, olhando mais alto que todos os bens que
nos são reservados na esperança segundo as promessas, de não temer senão
isto: de perder a amizade divina e de não estimar senão o que é
honrável e amável, de tornar-se amigo de Deus, o que é, para mim, a
perfeição da vida. Se isto for conquistado por ti – e o será
abundantemente, eu o sei -, teu espírito, elevando-se ao que é
verdadeiramente grande e divino, o ganho disso será para todos, no
Cristo Jesus. Amém”.

Eis aí algo novo, embora patrimônio da
cultura cristã antiga, que poderia trazer alguma luz à figura sombria de
Moisés retratada no filme em pauta.
Outro personagem que merece menção pela
carência de sentido, é o próprio Deus, que se manifesta como uma criança
mal-educada, prepotente e age com arbitrariedade. Moisés e Deus lutam
entre si como crianças, quase uma birra. Injustificável a materialização
de um Deus que nem seu nome deixa pronunciar.




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