Pular para o conteúdo principal

Mais Tomás: o "ser" e o "Ser"


Joathas Soares Bello*
 
Aristóteles cunhou o conceito de "ato" (energeia), "plenitude"; a realidade é "ativa", é "atuação", mas designou a "forma" como o princípio real mais excelente, aquele que dá conta da realidade da substância, ao atualizar a matéria-prima. A forma, contudo, é o princípio determinante da essência do real, fazendo com que o real seja "isto" ou "aquilo outro". Mas será a forma aquilo que faz o real "ser" simplesmente?

O que Tomás viu em "O ente e a essência" [ele fez a descoberta mais profunda da história da filosofia no seu primeiro texto!], é que, se a forma fosse o princípio último da realidade ou da substância, uma forma "pura" (substância separada aristotélica ou anjo bíblico) seria (estritíssimamente) divina. Mas os anjos são criados, então o seu ser, doado por Deus, não pode ser explicado suficientemente através da forma angélica, sendo necessário, portanto, supor que há um princípio ou ato mais supremo que a própria forma: esta última é o princípio da especificação da realidade (enquanto a matéria é princípio da individuação, nos seres sensíveis), mas ela é "potência" em relação a seu "ser" ou existência (não que sejam "2 coisas", como já falei no início); a forma não dá conta absolutamente da realidade (autossuficiência) de algo, mas se subordina ao princípio ou "ato de ser". Só Deus é o Próprio Ser, as demais realidades, a começar pelos anjos, "têm" ser ou "participam do ser": do ser que são, mas que não realizam de golpe, senão processualmente, e da totalidade do ser criado, e não diretamente do Ser Divino (o que seria panteísmo ou o mais sofisticado panenteísmo).

Essa distinção (ou composição) é de uma riqueza maravilhosa, mas parece que insuficientemente explorada na filosofia, mesmo pela escola tomista, que na Modernidade não valorizou este tema. Por que digo que é algo grandioso? Porque precisamente a análise desta composição é que nos permite chegar filosófica ou racionalmente ao Deus Criador e Transcendente da Bíblia!

Se lermos a "1a via" com esta chave metafísica, entenderemos que ali não se trata só de "atos" para ser "isto" ou "aquilo" (o que, no final das contas, poderia ser explicado só com o recurso às causas ou atos segundos), mas de uma comunicação do ser ou existir mesmo: "atualizar" uma potência é "realizá-la". Assim, o fogo não transmite apenas "calor" ou "quentura" à água fria, mas "realidade"/"ser" caloroso ou quente. "Atualizar" é "fazer mais real", "ativar realidade (ser)". E é porque as realidades intra-cósmicas não têm o ser por si mesmas, ou seja, elas não recebem apenas o ser "isto" ou "aquilo", mas o "ser" isto ou aquilo, que deve haver um Ato Puro ou Motor Imóvel que é o Ser Subsistente!

Não porque não possa haver uma série infinita de coisas finitas, mas porque uma infinitude de coisas finitas, e ponto, é algo sem sentido! A série (quantitativamente) infinita não poderia ter se dado o ser, justamente porque nesta série só há coisas finitas que não possuem o ser por si! Logo, sendo finita ou infinita (o que em tese seria possível, como demonstrou Tomás em "Acerca da eternidade do mundo") a série das coisas finitas, elas devem repousar num Ser qualitativamente Infinito, que possui o Ser por Si e transmite o ser (criado ex nihilo) a suas criaturas finitas, transcendendo-as, isto é, distinguindo-Se delas.

O Motor Imóvel não está no princípio cronológico das coisas, ele é seu Princípio Supremo hic et nunc.






____________________________________________________________
(*) graduação em Licenciatura em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2000), mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2004) e doutorado em Filosofia pela Universidad de Navarra, Espanha (2009), atuando principalmente nos seguintes temas: teoria do conhecimento, ontologia, filosofia da religião, antropologia filosófica, história da filosofia. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

"Wokismo": uma religião universitária?

    Jean Marcel Carvalho França* É popular, e há séculos repetida com orgulho pelos seus membros, a história de que as universidades emergiram na paisagem urbana europeia, entre os séculos XI e XIV, como um espaço de liberdade e mesmo de rebeldia, um espaço em que se podia estudar, refletir e ensinar com uma certa flexibilidade, distante da rigidez e do dogmatismo do ambiente monástico, onde o conhecimento era majoritariamente produzido. O mundo, no entanto, é mudança, e quase nunca para as bandas que esperamos. A mesma instituição que surgiu sobre a égide da crítica e que, depois do iluminismo, se consolidou como o lugar do livre pensar e do combate ao tal obscurantismo, sobretudo o religioso, pariu recentemente, entre o ocaso do século XX e as décadas iniciais do XXI, uma religião tão ou mais dogmática do que aquelas que dizia combater: a religião woke . Para os interessados em conhecer mais detalhadamente a história e os dogmas desse discurso de fé que cobra contrição mas ...

Missa na UFRJ

MÍDIA, IGREJA E PANDÊMIA

      Paul A. Soukup A ecologia da mídia, um campo particular dos estudos da comunicação, aborda seu objeto como um ecossistema. Para usar a metáfora de um ecossistema natural, esse tipo de estudo imagina a comunicação como um ambiente no qual muitos elementos diferentes interagem. Não contém apenas diferentes meios de comunicação, nomeadamente telefone, rádio, televisão, redes sociais , mídia impressa e assim por diante, mas também pessoas, ideias, culturas, eventos históricos, etc. Como acontece em qualquer ecossistema, qualquer parte, mudando, afeta todas as outras. Mantendo a imagem de um ecossistema natural, por exemplo um lago em uma floresta, a introdução de uma nova espécie de sapo afetará os insetos que vivem perto do lago, as ervas e flores da área, os pássaros, os p...