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Uma senzala chamada Ideologia


Gravura de Johann Moritz Rugendas
 

Perto de minha casa mora um catador de recicláveis. Não é negro. Altivo, perambula, com seu amigo inseparável — um cão vira-latas –, pelas ruas do bairro puxando um carrinho e virando lixos à procura do que lhe sirva. Não me parece doente, tampouco desesperado. Parece o que realmente é: pobre — alguém pouco favorecido. Não o conheço. Não sei se foi rico, se tem estudo, família; mas quando o vejo, reconheço: é pobre.
Pensando nesse homem, vi com estranheza uma notícia que se espalhou de maneira epidêmica dias atrás — da militância de extrema esquerda (incluindo aquela que diz “mosquita” e desgovernou o país recentemente) aos jornais de TV em horário nobre: “Negra, pobre e da rede pública fica em 1º em curso mais concorrido da Fuvest”. Foi aprovada para o curso de Medicina da USP-Ribeirão, feito pelo qual merece os parabéns. Lendo a matéria, no entanto, descobri que a “negra-pobre” é fã de Grey’s Anatomy (série exibida em canal pago). Então pensei: “será que aquele catador de lixo assiste séries? Será que usa as redes sociais?”. Talvez sim, não sei.
E não foi só isso que descobri. Li que a moça, em entrevista, repetiu o famigerado bordão racista e ofensivo da esquerda: “A Casa-Grande surta quando a Senzala vira médica”. Pensei de novo: “Será que essa moça sabe o que está dizendo? Será que imagina como era a vida numa Senzala? Não entende que, assim, menospreza o sofrimento daqueles que viveram tal situação? Não se dá conta que esse discurso só serve a interesses alheios aos seus?” Talvez sim, não sei.
Descobri também que sua aprovação foi fruto de muito esforço; fez cursinho e reforço de matemática, porém disse não acreditar em mérito porque “teve ajuda”. Como se o mérito prescindisse do amparo de terceiros; como se a ajuda não tivesse surgido exatamente em reconhecimento ao seu esforço. E, em nome de um discurso vazio, escraviza-se voluntariamente e me leva a admitir que ela vive, de fato, numa senzala. Não naquele lugar escuro, enfumaçado e opressivo — o “pombal negro” de que fala Joaquim Nabuco. Mas, do conforto de seu lar (num conjunto habitacional em Ribeirão Preto), a linda jovem se entrega aos encantos do socialismo e do feminismo — duas senhoras vorazes que adoram escravizar negros(as) em seu principal engenho ideológico: a universidade.
Tudo isso é muito triste, pois a história do negro brasileiro é sinônimo de superação; e quando um(a) negro(a) encara suas conquistas como essa jovem, despreza o esforço de gente como José do Patrocínio, André Rebouças, Chiquinha Gonzaga, Maria Firmina dos Reis e tantos outros que lutaram pelo fim da escravidão no Brasil. Agindo assim, nega, categoricamente, a história dos negros que deseja representar, e se prostra, cativa de uma ideologia.
Mas o mais lamentável é esse pretenso protagonismo. Sabem quem foi a primeira médica negra do Brasil? Maria Amélia Cavalcante de Albuquerque, nascida em 1854, num engenho em Pernambuco, e parente do primeiro médico negro do Brasil, o Dr. José Marques. Dra. Amélia Cavalcante, mulher de inteligência singular, recebeu ajuda e incentivo de ninguém menos que Tobias Barreto, o proeminente filósofo e poeta (negro), e formou-se em 1892, na Faculdade de Medicina do RJ. No dia de sua morte, em 1934, a imprensa noticiou sua importância e pioneirismo.
O maior bem que um ser humano pode almejar é a liberdade; no entanto, parece-me que algumas pessoas, confirmando a tese de Aristóteles, nasceram para a servidão.


Paulo Cruz é mestre em Ciências da Religião e professor de Filosofia no ensino médio da rede estadual paulista.

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