originais a depender da época. Já foi eugenia, agora é prevenção. Cada
tempo teria sua biopolítica e seus inimigos do bem-estar, permitam-me
lembrar Michel Foucault. O infeliz da vez é o zika vírus; e, com pouca
originalidade, a população são os úteros das mulheres. O aumento na
notificação de recém-nascidos com microcefalia em áreas endêmicas de
dengue acendeu a hipótese de que haveria causalidade entre o zika e a
má-formação. O Instituto Evandro Chagas encontrou o vírus em tecidos e
sangue de um único bebê, e o alarde foi internacional: “Ministério da Saúde confirma relação entre zika vírus e microcefalia”.
Quanta ambiguidade e terror nesse
anúncio. Em ciência, “relação” pode ser tudo e nada ao mesmo tempo. Há
uma diferença entre causa e relação — o que precisamos saber é se o zika
vírus causa a microcefalia no feto. Por que essa diferença importa?
Porque relação pode ser erro científico — “o risco de sarampo é maior
entre os consumidores de tomates” diz o quê? Que entre as pessoas que
gostam de tomate, muitas tiveram sarampo, mas nada sobre a causa do
sarampo. Não quero aqui contestar que uma nova descoberta científica
possa estar em curso, apenas estranhar como uma hipótese, um único caso
de relação comprovada, pode ter sido suficiente para um alerta de saúde
pública com consequências importantes para as mulheres. E não quaisquer
mulheres, mas as pobres e nordestinas.
Há tempos convivemos com a dengue. O
mosquito Aedes aegypti é daqueles cujo nome científico é conhecido sem
decoreba de escola. A dengue é doença da vida comum, todas nós
conhecemos alguém que já sentiu as dores cortantes do vírus da dengue. A
microcefalia no feto é outra ordem de inquietação sanitária — a
má-formação não tem cura e, mesmo o diagnóstico sendo feito intraútero,
não há direito ao aborto no Brasil. Os dados epidemiológicos anunciam um
crescimento de dez vezes nos casos notificados — de pouco mais de cem
nos últimos cinco anos, agora identificamos mais de mil recém-nascidos
com microcefalia. E os casos são complexos: em alguns bebês, há
múltiplas más-formações; em outros, apenas a microcefalia.
Se essa é uma “situação inédita para a pesquisa científica mundial”,
segundo o Ministério da Saúde, para a história do controle dos corpos
das mulheres, é repetição do já-vivido. A biopolítica tem nas mulheres
alvo preferido — não se esperam certezas científicas para anunciar que a
melhor prevenção da microcefalia é não engravidar; que para conter o
crescimento populacional é preciso restringir número de filhos; que,
para que não haja crianças na rua, esterilizar mulheres pobres seria a
saída. Esse não é um bom anúncio. A única prevenção ao zika vírus é o
controle do mosquito. O resto é política de saúde para amadores.
Debora Diniz é antropóloga,
professora da Universidade de Brasília, pesquisadora da Anis –
Instituto de Bioética e autora do livro “Cadeia: relatos sobre mulheres”
(Civilização Brasileira). Este artigo é parte do falatório Vozes da
Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e
conversas. Para saber mais sobre o tema deste artigo,
siga https://www.facebook.com/AnisBioetica.
Zika vírus: a biopolítica dos úteros
Comentários
Postar um comentário