Régine Pernoud
Em
1975, “ano internacional da mulher”, o ritmo de referências à Idade
Média tornou-se estonteante; a imagem da Idade Média, dos tempos
obscuros de onde se emerge, como a Verdade de um poço, impunha-se a
todos os espíritos e fornecia um tema básico para os discursos,
colóquios, simpósios e seminários de todos os tipos. Como eu
mencionasse, um dia, em sociedade, o nome de Eleonora de Aquitânia,
obtive logo aprovações entusiásticas: “Que personagem admirável! —
exclamou um dos presentes. Numa época em que as mulheres só pensavam
em ter filhos...”. Eu lhe fiz uma observação sobre o fato de que
Eleonora parecia haver pensado assim pois teve dez e, considerando sua
personalidade, isto não poderia ter ocorrido por simples advertência. O
entusiasmo tornou-se um pouco menor.
A
situação da mulher, na França medieval, é na atualidade assunto mais
ou menos novo: poucos estudos sérios lhe foram consagrados, pode-se
mesmo dizer que se os poderia contar pelos dedos. A sociedade Jean
Bodin, cujos trabalhos são tão notáveis, editou em 1959-1962 dois
grossos volumes (respectivamente 346 e 770 páginas) sobre a mulher.
Todas as civilizações são sucessivamente examinadas. A mulher é
estudada na sociedade do Sião, ou de acordo com os vários direitos
cuneiformes, ou no Direito malikité-magrebino, mas, para o nosso
Ocidente medieval, não se contam mais do que dez páginas relativas ao
Direito canônico, outras dez ao período que vai do século XIII ao fim do
século XVII, um estudo consagrado aos tempos clássicos até o Código
Civil, um outro, a monarquia Franca, e trabalhos mais pormenorizados
sobre a Itália, a Bélgica e a Inglaterra, na Idade Média. E eis tudo. O
período feudal é completamente esquecido.
É
igualmente inútil procurar nesta obra um estudo sobre a mulher nas
sociedades célticas, onde, estamos certos, ela tinha um papel
contrastante com o confinamento a que estava sujeita nas sociedades do
tipo clássico greco-romano. No que se refere aos celtas, para os
historiadores de nossa época, o homem e a mulher se encontravam num pé
de igualdade completa, tanto que não se ressalta nunca nem um nem
outro. Aos celtas, de uma vez por todas, foi recusado o direito de
existir.
No entanto, impõe-se uma imagem, à qual já tive ocasião de me referir.1.Não
é, em realidade, surpreendente pensar que nos tempos feudais a rainha
é coroada como o rei, geralmente em Reims, às vezes em outra catedral
do domínio real (em Sens, como Margarida de Provence), mas sempre
pelas mãos do arcebispo de Reims? Dito de outra forma, atribuía-se à
coroação da rainha tanto valor quanto à do rei. Ora, a última rainha a
ser coroada foi Maria de Medicis; ela o foi, aliás, tardiamente, em
1610, na véspera do assassinato de seu marido, Henrique IV; a
cerimônia ocorreu em Paris, segundo um costume consagrado nos séculos
anteriores (atingir Reims representava então um feito militar por
causa das guerras anglo-francesas). E, além disso, desde os tempos
medievais (o termo é tomado aqui em oposição a tempos feudais), a
coroação da rainha tinha-se tornado menos importante que a do rei;
numa época em que a guerra se alastrava pela França de forma endêmica
(a famosa Guerra dos Cem Anos), as necessidades militares começaram a
ter primazia entre todas as preocupações, por ser o rei, antes de
tudo, o “chefe da guerra”. Tanto assim é que, no século XVII, a rainha
desaparece literalmente da cena em proveito da favorita. Basta
lembrar qual foi o destino de Maria Teresa ou o de Maria Leszcynska
para se convencer. E quando a última rainha quis retomar uma parte
deste poder, lhe foi dada ocasião de se arrepender, pois ela se chamava
Maria Antonieta (é justo lembrar que a última favorita, a Du Barry,
reuniu-se à última rainha no cadafalso).
Esta
rápida visão do papel das rainhas dá idéia bem exata do que se passou
com as mulheres; o lugar que elas ocuparam na sociedade; a influência
que exerceram seguiu, exatamente, um traçado paralelo. Enquanto uma
Eleonora de Aquitânia, uma Branca de Castela dominam realmente seus
séculos, exercem poder sem contestação no caso de ausência do rei,
doente ou morto, e têm suas chancelarias, suas alfândegas, seus campos
de atividade pessoal (que poderia ser reivindicado como um fecundo
exemplo para os movimentos feministas de nosso tempo), a mulher, nos
tempos clássicos, foi relegada a um segundo plano; exerce influência
só na clandestinidade e se encontra notoriamente excluída de toda
função política ou administrativa. Ela é mesmo tida como incapaz de
reinar, de suceder no feudo ou no domínio, principalmente nos países
latinos e, finalmente, em nosso Código, de exercer qualquer direito
sobre seus bens pessoais.
É,
como sempre, na História do Direito que se deve procurar os fatos e
seu significado, ou seja, a razão desta decadência que se transformou,
com o século XIX, no desaparecimento total do papel da mulher,
principalmente na França. Sua influência diminui paralelamente à
ascensão do Direito romano nos estudos jurídicos, depois nas
instituições e, por fim, nos costumes. É um apagar progressivo do qual
se pode seguir as principais etapas, pelo menos na França, muito bem.
Curiosamente
a primeira disposição que afasta a mulher da sucessão ao trono foi
tomada por Filipe, o Belo. É verdade que este rei estava sob a
influência dos legisladores meridionais, que tinham literalmente
invadido a corte de França, o começo do século XIV, e que,
representantes típicos da burguesia das cidades notadamente das do Sul
mais voltadas para o comércio, redescobriram o Direito romano com uma
verdadeira avidez intelectual.
Esse Direito concebido por militares, funcionários, comerciantes, conferia aos proprietários o jus utendi et abutendi,
o direito de usar e abusar, em completa contradição com o Direito
consuetudinário de então, mas eminentemente favorável aos que detinham
riquezas, principalmente móveis. Àqueles, com razão, esta legislação
parecia infinitamente superior aos costumes existentes para assegurar e
garantir bens, tráficos e negócios. O Direito romano do qual vemos
renascer a influência na Itália, em Bolonha principalmente, foi a
grande tentação do período medieval; ele foi estudado com entusiasmo
não só pela burguesia das cidades, mas, também, por todos os que viam
nele um instrumento de centralização e de autoridade. Ele se ressente,
com efeito, de suas origens imperialistas e, por que não dizer,
colonialistas. Ele é o Direito, por excelência, dos que querem firmar
uma autoridade central estatizada. Também é reivindicado, adotado,
estendido para as potências que procuravam, então, a centralização:
pelo imperador, primeiro, depois pelo Papa. Em meados do século XIII, o
imperador Frederico II, cujas tendências eram as de um monarca, fez
deste tipo de direito a lei comum dos países germânicos. A
universidade que ele funda em Nápoles — a única que os súditos do
imperador estavam daí em diante autorizados a freqüentar — ministra o
estudo do Direito romano, tão bem que esse Direito regeu as
instituições e os costumes dos países germânicos numa época em que o
Ocidente não o admitia ainda.2.
Apenas ao longo do século XVII é que o estudo do Direito romano,
precisamente, porque era o Direito imperial, será admitido na
Universidade de Paris. É verdade que, muito antes, era ensinado em
Toulouse, e que, favorecido pela admiração exagerada que se sente, no
século XVI, pela Antiguidade, tinha começado a impregnar os hábitos e a
modificar profundamente os costumes e as mentalidades, na própria
França.
Ora,
o Direito romano não é favorável à mulher, nem tampouco à criança. É
um direito monárquico, que só admite um fim. É o direito do pater familias, pai,
proprietário e, em sua casa, grande-sacerdote, chefe da família com
poderes sagrados, sem limites no que concerne a seus filhos; tem sobre
eles direito de vida e de morte — e da mesma forma sobre sua mulher,
apesar das limitações, tardiamente introduzidas sob o Baixo Império.
Apoiando-se
no Direito romano é que juristas como Dumoulin, por seus tratados e
seus ensinamentos, contribuem, por sua vez, para estender o poder do
Estado centralizado e também — o que nos interessa aqui — para
restringir a liberdade da mulher e da sua capacidade de ação,
principalmente no casamento. A influência deste direito será tão forte
que, no século XVI, a maioridade, que era aos doze anos para as
meninas e quatorze para os rapazes, na maior parte dos costumes, vai
ser transferida para a mesma idade fixada em Roma, isto é, vinte e
cinco anos (em Roma, a maioridade não importava muito, pois o poder do
pai sobre os filhos perdurava durante toda a vida). Era uma nítida
regressão sobre o Direito consuetudinário, que permitia à criança
adquirir, muito jovem, uma verdadeira autonomia, sem que, por isso, a
solidariedade da família lhe fosse negada. Nesta estrutura, o pai
tinha autoridade de gerente, não de proprietário: ele não tinha o
poder de deserdar seu filho mais velho e era o costume que, nas
famílias nobres ou de homens comuns, regulava a devolução dos bens, em
um sentido que mostra claramente o poder que a mulher conservava
sobre o que lhe pertencia: no caso de um casal morrer sem herdeiros
diretos, os bens provenientes do pai iam para a família paterna, mas
os provenientes da mãe voltavam para a família materna, segundo o adágio
bem conhecido do Direito consuetudinário: paterna paternis, materna maternis.
No
século XVII já se constata uma profunda evolução neste ponto de
vista: os filhos, considerados como menores até vinte e cinco anos,
continuam sob a autoridade do pai e a característica de propriedade
tendente a tornar-se monopólio do pai não faz mais do que se firmar. O
Código de Napoleão dá o último retoque a este dispositivo e dá um
sentido imperativo às tendências que começaram a se firmar desde o fim
da época medieval. Lembremos que apenas no fim do século XVII a
mulher toma obrigatoriamente o nome do marido; e, também, que é
somente com o Concílio de Trento, portanto na segunda metade do século
XVI, que o consentimento dos pais torna-se necessário para o casamento
de adolescentes; tanto quanto se tornou indispensável a sanção da
Igreja. Ao velho adágio dos tempos anteriores:
Beber, comer, dormir juntos
Fazem o casamento, me parece
junta-se:
Mas é preciso passar pela Igreja.
Não
nos esqueceremos de destacar aqui o número de uniões devidamente
arranjadas pela família nos tempos feudais: os exemplos são abundantes
realmente, moças e rapazes, noivos desde o berço, prometidos um ao
outro. Também não faltou quem quisesse argumentar com o fato de que as
mulheres não eram livres na época; o que é fácil de retrucar, pois
que, deste ponto de vista, rapazes e moças se encontravam em pé de
igualdade rigorosa, porque se dispõe do futuro esposo absolutamente do
mesmo modo que da futura esposa. Deste modo, é incontestável que
ocorria, então, o que ainda hoje acontece em dois terços do mundo,
isto é, que as uniões, em sua grande maioria, eram arranjadas pelas
famílias. E nas famílias nobres, especialmente as reais, essas
disposições faziam, de algum modo, parte das responsabilidades de
nascimento, porque um casamento entre dois herdeiros de feudo ou de
reinos era considerado como o melhor meio de selar um tratado de paz,
assegurar amizade recíproca e, também, de garantir para o futuro uma
herança vultosa.
Uma
força lutou contra estas uniões impostas, e esta foi a Igreja; ela
multiplicou, no Direito canônico, as causas de nulidade, reclamou sem
cessar a liberdade para os que se unem, um com relação ao outro e, com
freqüência, mostrou-se bastante indulgente ao tolerar, na realidade, a
ruptura de laços impostos — muito mais nesta época do que mais tarde,
notemos. O resultado é a constatação que provém da simples evidência
de que o progresso da livre escolha do esposo acompanhou em toda parte
o progresso da difusão do Cristianismo. Hoje, em países cristãos,
esta liberdade, tão justamente reclamada, é reconhecida pelas leis,
enquanto que, nos países muçulmanos ou nos países do Extremo Oriente,
esta liberdade, que nos parece essencial, não existe ou só
recentemente foi concedida.3
Isto
nos leva a discutir o slogan: “Igreja hostil à mulher”. Não nos
demoraremos em questionar a afirmação acima, o que exigiria um volume à
parte; não iremos mais discutir as tolices evidentes4
que foram proferidas sobre o assunto. “Não foi senão no século XV que
a Igreja admitiu que a mulher tinha alma”, afirmava candidamente, um
dia no rádio, não sei que romancista certamente cheio de boas
intenções, mas cuja informação apresentava algumas lacunas! Assim,
durante séculos, batizou-se, confessou-se e ministrou-se a Eucaristia a
seres sem alma! Neste caso, por que não aos animais? É estranho que
os primeiros mártires honrados como santos tenham sido mulheres e não
homens. Santa Agnes, Santa Cecília, Santa Ágata e tantas outras. É
verdadeiramente triste que Santa Blandina ou Santa Genoveva tenham
sido desprovidas de uma alma imortal. É surpreendente que uma das mais
antigas pinturas das catacumbas (no cemitério de Priscille)
representasse, precisamente, a Virgem com o Menino, bem
designado pela estrela e pelo profeta Isaías. Enfim, em quem
acreditar, nos que reprovam na Igreja medieval justamente o culto da
Virgem Maria, ou naqueles que julgam que a Virgem Maria era, então,
considerada como uma criatura sem alma?
Sem
nos demorarmos, portanto, nestas tolices, recordaremos aqui que
algumas mulheres (que nada designavam particularmente, pela família ou
pelo nascimento, pois que vinham, como diríamos atualmente, de todas
as camadas sociais, como, por exemplo, a pastora de Nanterre)
usufruíram na Igreja, e justamente por sua função na Igreja, de um
extraordinário poder na Idade Média. Certas abadessas eram senhoras
feudais cujo poder era respeitado do mesmo modo que o de outros
senhores; algumas usavam o báculo como os bispos; administravam,
muitas vezes, vastos territórios com cidades e paróquias... Um
exemplo, entre mil outros: no meio do século XII, cartulários nos
permitem seguir a formação do mosteiro de Paraclet, cuja superiora é
Heloisa; basta percorre-los para constatar que a vida de uma abadessa,
na época, comporta todo um aspecto administrativo: as doações que se
acumulam, que permitiam perceber ora o dízimo de um vinhedo, ora o
direito às taxas sobre o feno e o trigo, aqui o direito de usufruir
uma granja, e lá o direito de pastagem na floresta... Sua atividade é,
também, a de um usufruidor, ou seja, a de um senhor. Quer dizer que, a
par de suas funções religiosas, algumas mulheres exerciam, mesmo na
vida laica, um poder que muitos homens invejariam no presente.
Por
outro lado, constata-se que as religiosas desta época — sobre as
quais, digamos de passagem, ainda nos faltam estudos sérios — são na
maioria mulheres extremamente instruídas, que poderiam rivalizar, em
sabedoria, com os monges mais letrados do tempo. A própria Heloísa
conhece e ensina às monjas o grego e o hebraico. É de uma abadia de
mulheres, a de Gandersheim, que provém um manuscrito do século X
contendo seis comédias, em prosa rimada, imitação de Terêncio, e que
são atribuídas à famosa abadessa Hrostsvitha, da qual, há muito tempo,
conhecemos a influência sobre o desenvolvimento literário nos países
germânicos. Estas comédias, provavelmente representadas pelas
religiosas, são, do ponto de vista da história dramática, consideradas
como prova de uma tradição escolar que terá contribuído para o
desenvolvimento do teatro na Idade Média. Digamos, de passagem, que
muitos mosteiros de homens e de mulheres ministravam instrução às
crianças da região.
É
surpreendente, também, constatar que a mais conhecida enciclopédia do
século XII é da autoria de uma religiosa, a abadessa Herrade de
Landsberg. É a famosa Hortus deliciarum (Jardim das delícias)
na qual os eruditos retiravam os ensinamentos mais corretos sobre o
avanço das técnicas, em sua época. Poder-se-ia dizer o mesmo das obras
da celebre Hildegarde de Bingen. Enfim, uma outra religiosa, Gertrude
de Helfa, no século XIII, conta-nos como se sentiu feliz ao passar de
estado de gramaticista ao de teóloga, isto é, depois de ter
percorrido o ciclo de estudos preparatórios ela galgara o ciclo
superior, como se fazia na Universidade. O que prova que, ainda no
século XIII, os conventos de mulheres permaneciam sendo o que sempre
foram desde São Jerônimo, que instituiu o primeiro dentre eles, a
comunidade de Belém: lugares de oração, mas, também, de ciência
religiosa, de exegese, de erudição; estuda-se a Escritura Sagrada,
considerada como a base de todo conhecimento e, também, os elementos de
saber religioso e profano. As religiosas são moças instruídas;
portanto, entrar para o convento é o caminho normal para as que querem
desenvolver seus conhecimentos além do nível comum. O que parece
extraordinário em Heloísa é que, em sua juventude, não sendo religiosa
e não desejando claramente entrar para o convento, procurava,
todavia, estudos muito áridos, ao invés de se contentar com a vida
mais frívola, mais despreocupada, de uma jovem desejando “viver no
século”. A carta que Pedro, o Venerável lhe enviou o diz
expressamente.
Mas
há algo mais surpreendente. Se quisermos fazer uma idéia exata do
lugar ocupado pela mulher na Igreja dos tempos feudais, é preciso
perguntarmo-nos o que se diria, em nosso século XX, de conventos de
homens colocados sob a direção de uma mulher. Um projeto deste gênero
teria, em nosso tempo, alguma possibilidade de se realizar? E, no
entanto, isto foi realizado com pleno sucesso, e sem provocar o menor
escândalo, na Igreja por Robert d’Arbrissel, em Fontevrault, nos
primeiros anos do século XII. Tendo resolvido fixar a incrível
multidão de homens e mulheres que se arrastava atrás dele — porque ele
foi um dos maiores pregadores de todos os tempos —, Robert d’Abrissel
decidiu fundar dois conventos, um de homens, outro de mulheres;5 entre
eles se elevava a Igreja, único lugar em que monges e monjas podiam
se encontrar. Ora, este mosteiro duplo foi colocado sob a autoridade,
não de um abade, mas de uma abadessa. Esta, por vontade do fundador,
devia ser viúva, tendo tido a experiência do casamento. Para
completar, digamos que a primeira abadessa que presidiu os destinos da
Ordem de Fontevrault, Petronila de Chemillé, tinha 22 anos. Não
acreditamos que, mesmo nos dias de hoje, semelhante audácia tivesse a
menor oportunidade de ser considerada ao menos uma única vez.
Se
se examinam os fatos, uma conclusão se impõe: durante todo o período
feudal, o lugar da mulher na igreja apresentou algumas diferenças
daquele ocupado pelo homem (e em que medida não seria esta uma prova
de sabedoria: levar em conta que o homem e a mulher são duas criaturas
equivalentes, mas diferentes?), mas este foi um lugar eminente, que
simboliza, por outro lado, perfeitamente o culto, insigne também,
prestado à Virgem entre todos os santos. E é pouco surpreendente que a
época termine por uma figura de mulher: a de Joana D’Arc, que, seja
dito de passagem, não poderia, jamais, nos séculos seguintes, obter a
audiência e suscitar a confiança que conseguiu, afinal.
É
surpreendente, também, observar a rigidez que se produziu ao redor da
mulher no extremo fim do século XIII. É por uma medida bastante
significativa que, em 1298, o Papa Bonifácio VII decide para as monjas
(cartuxas, cistercienses) a clausura total e rigorosa que elas
conheceram a partir daí. Em seguida, não se admitirá mais que a
religiosa se misture com o mundo. Não se tolerarão mais estas leigas
consagradas, que foram as penitentes, no século XIII, que levavam uma
vida igual a todos, mas que se consagravam por um voto religioso. No
século XVII, principalmente, veremos as religiosas da Visitação,
destinadas, por sua fundadora, a se misturarem com a vida quotidiana,
obrigadas a se conformar com a mesma clausura das carmelitas; tanto que
São Vicente de Paulo, para permitir às Irmãs de Caridade prestar
serviço aos pobres, tratar dos doentes e cuidar das famílias
necessitadas, evitará tratá-las como religiosas e de fazê-las proferir
os votos: seu destino foi, então, de Visitadoras. Não se poderia mais
conceber que uma mulher tendo decidido consagrar sua vida a Deus não
fosse enclausurada; enquanto que, nas novas ordens criadas para os
homens, por exemplo os Jesuítas, estes permaneciam no mundo.
Basta
dizer que o status da mulher na Igreja é exatamente o mesmo que na
sociedade civil e que tudo o que lhe conferia alguma autonomia, alguma
independência, alguma instrução, lhe foi, pouco a pouco, retirado
depois da Idade Média. Ora, como ao mesmo tempo a universidade — que
admite apenas os homens — tenta concentrar o saber e o ensino, os
conventos deixam, de modo gradativo, de ser os centros de estudo que
tinham sido anteriormente; digamos que eles param, também, e muito
rapidamente, de ser centros de oração.
A
mulher se encontra, portanto, excluída da vida eclesiástica, como da
vida intelectual. O movimento se precipita quando, no começo do século
XVI, o rei de França mantém nas mãos a nomeação de abadessas e
abades. O melhor exemplo continua sendo a Ordem de Fontevrault, que se
torna um asilo para as velhas amantes do rei. Asilo onde se leva daí
em diante uma vida cada vez menos edificante, porque a clausura tão
rigorosa não demora a sofrer grandes alterações, confessadas ou não.
Se algumas ordens, como a do Carmelo ou de Santa Clara, guardam sua
pureza graças a reformas, a maior parte dos mosteiros de mulheres, no
fim do Antigo Regime, é de casas de recolhimento onde as filhas
caçulas de grandes famílias recebem muitas visitas e onde se jogam
cartas e outros “jogos proibidos”, até tarde da noite.
Faltaria
falar das mulheres que não eram nem grandes damas nem abadessas, nem
mesmo monjas: camponesas ou citadinas, mães de família ou
trabalhadoras. Inútil dizer que, para ser corretamente tratada, a
questão reclamaria muitos volumes e, também, que exigiria trabalhos
preliminares, que não foram feitos. Seria indispensável pesquisar não
somente as coleções sobre os costumes ou os estatutos das cidades,
mas, também, os cartulários, os documentos judiciários ou, ainda, os
inquéritos ordenados por São Luís; 6 destacam-se
aí, colhidos na vida quotidiana, mil pequenos pormenores colhidos ao
acaso e sem ordem preconcebida, que nos mostram homens e mulheres
através dos menores atos de suas existências: aqui a queixa de uma
cabeleireira, ali a de uma salineira (comércio do sal), de uma
moleira, da viúva de um agricultor, de uma castelã, da mulher de um
cruzado, etc.
É
por documentos deste gênero que se pode, peça por peça, reconstituir,
como em um mosaico, a história real. Ela nos parece aí, é inútil
dizer, muito diferente das canções de gesta, dos romances de cavalaria
ou das fontes literárias que tão freqüentemente tomamos por fontes
históricas!
O
quadro que se delineia da reunião desses documentos nos apresenta
mais de um traço surpreendente, pois vemos, por exemplo, mulheres
votarem como homens em assembléias urbanas ou nas das comunas rurais.
Freqüentemente, no divertimos em conferências ou palestras diversas,
citando o caso de Gaillardine de Fréchou, que diante de um
arrendamento proposto aos habitantes de Cauterets, nos Pirineus, pela
Abadia de Saint-Savin, foi a única a votar não, quando todo o resto da população votou sim.
O voto das mulheres nem sempre é expressamente mencionado, mas isto
pode ser porque não se via necessidade em faze-lo. Quando os textos
permitem diferenciar a origem dos votos, percebe-se que, em certas
regiões, tão diferentes como as comunas bearnenses, certas cidades de
Champanha, ou algumas cidades do leste como Pont-à-Mousson, ou ainda
na Touraine, na ocasião dos Estados-Gerais de 1308, as mulheres são
explicitamente citadas entre os votantes, sem que isto seja
apresentado como um uso particular do local. Nos estatutos das cidades
indica-se, em geral, que os votos são recolhidos na assembléia dos
habitantes sem nenhuma especificação; às vezes, faz-se menção da
idade, indicando, como em Aurillac, que o direito de voto é exercido
com a idade de vinte anos, ou em Embrun, a partir de quatorze anos.
Acrescentamos a isto que, como geralmente os votos se fazem por fogo,
quer dizer, lar, lareira, por casa, de preferência a por indivíduo, é
aquele que representa o “fogo”, portanto, o pai de família, que é
chamado a representar os seus; se é o pai de família que é
naturalmente seu chefe, fica bem claro que sua autoridade é a de um
gerente e de um administrador, não a de um proprietário.
Nas
atas de notários é muito freqüente ver uma mulher casada agir por si
mesma, abrir, por exemplo, uma loja ou uma venda, e isto sem ser
obrigada a apresentar uma autorização do marido. Enfim, os registros
de impostos (nós diríamos, os registros de coletor), desde que foram
conservados, como é o caso de Paris, no fim do século XIII, mostram
multidão de mulheres exercendo funções: professora, médica, boticária,
estucadora, tintureira, copista, miniaturista, encadernadora, etc.
Não
é senão no fim do século XVI, por um decreto do Parlamento, datado de
1593, que a mulher será afastada explicitamente de toda a função no
Estado. A influência crescente do Direito romano não tarda, então, a
confinar a mulher no que foi sempre seu domínio privilegiado: os
cuidados domésticos e a educação dos filhos. Até o momento em que
isto, também lhe será retirado por lei, porque, destaquemos, com o
Código de Napoleão ela já não é nem mesmo a senhora de seus próprios
bens e desempenha, em sua casa, papel subalterno. Embora desde
Montaigne até Jean-Jacques Rousseau sejam os homens que elaborem
tratados sobre a educação, o primeiro, publicado na França foi de uma
mulher, Dhuoda, que o elaborou (em versos latinos) por volta de
841-843, para uso de seus filhos. 7
Há
alguns anos, certas discussões ocorridas a respeito da questão da
autoridade paterna, na França, foram muito desconcertantes para o
historiador da Idade Média; realmente, a idéia de que foi necessária
uma lei para dar à mulher direito de olhar pela educação de seus
filhos teria parecido paradoxal nos tempos feudais. A comunidade
conjugal, pai e mãe, exercia conjuntamente, então, a função da
educação e da proteção dos filhos, assim como, eventualmente, a
administração de seus bens. É verdade que a família era concebida em
um sentido mais amplo; esta educação causa infinitamente menos
problemas, porque ela se faz no meio de um contexto vital, de uma
comunidade familiar mais abrangente e mais diversificada do que hoje,
pois não está reduzida à célula inicial pai-mãe-criança, mas comporta
também os avós, colaterais, domésticos no sentido etimológico do
termo. O que não impede que a criança tenha, eventualmente, sua
personalidade jurídica distinta; assim, se ela herda bens próprios
(legados, por exemplo, por um tio), estes são administrados pela
comunidade familiar, que, em seguida, deverá prestar-lhe conta.
Poder-se-ia
multiplicar assim os exemplos, com pormenores fornecidos pela
história do Direito e dos costumes, atestando a degradação do lugar
ocupado pela mulher entre os costumes feudais e o triunfo de uma
legislação “à romana”, da qual nosso Código ainda está impregnado.
Seria melhor que, na época em que os moralistas queriam ver “a mulher
em casa”, fosse mais indicado inverter a proposição e exigir que o lar
fosse da mulher.
A
reação só chegou em nossos tempos. Entretanto, ela é, digamo-lo,
muito decepcionante: tudo se passa como se a mulher, eufórica pela
idéia de ter penetrado no mundo masculino, continuasse incapaz da
força da imaginação suplementar, que lhe seria necessária, para levar a
este mundo seu traço particular, precisamente aquele que faz falta à
nossa sociedade. Basta-lhe imitar o homem, ser julgada capaz de
exercer as mesmas funções, adotar os comportamentos e até os hábitos
de vestir do seu parceiro, sem mesmo se questionar sobre o que é
realmente contestável e o que deveria ser contestado. Seria o caso de
se perguntar se ela não está movida por uma admiração inconsciente, o
que podemos considerar excessivo, por um mundo masculino que ela
acredita necessário e suficiente copiar com tanta exatidão quanto
possível, seja perdendo ela própria sua identidade, ou negando
antecipadamente sua originalidade.
Tais
constatações levaram-nos bem longe do mundo feudal; elas podem, em
todo o caso, levar ao desejo que este mundo feudal seja um pouco mais
bem conhecido, dos que crêem, de boa fé, que a mulher “sai enfim da
Idade Média”: elas têm muito que fazer para reencontrar o lugar que
foi seu nos tempos da rainha Eleonora ou da rainha Branca...
Idade Média: O Que Não Nos Ensinaram, Capítulo VI, Editora Agir, Rio de Janeiro 1978.
Notas:
P. Riché, Dhuoda Manuel pour mon fils, Paris, Ed. du Cerf, 1975.
|
- 1. Histoire de la bourgeoisie, op. Cit., t. II, pp. 30-31.
- 2. [ Paradoxalmente, os países germânicos foram modelados pelo Direito romano, enquanto que, na França, embora desagrade aos que continuam presos ao mito de “raça latina”, os costumes eram formados por hábitos que acreditamos “germânicos” e que devíamos antes chamar “célticos”.
- 3. “A legislação muçulmana proíbe à mulher o que ela reivindica, atualmente, e que chama de seus direitos, o que não constitui senão uma agressão contra os direitos que foram conferidos apenas aos homens”. Assim se exprimia, em 1952, em uma publicação intitulada Al Mistri, o Xeque Hasanam Makhluf (ver La Documentation française, n° 2418, 31 de maio de 1952, p. 4).
- 4. Não pensamos que fosse necessário, quando da primeira edição deste livro, lembrar as origens desta ridícula afirmação. Mas acontece que, ouvindo-a recentemente (1989), este esclarecimento parece útil. Gregório de Tour, na sua Histoire des Francs (História dos Francos), cap. 91, conta que o Sínodo de Mâcon de 486, ao qual ele não assistiu — diga-se de passagem —, um dos prelados fez notar “que não se devia compreender as mulheres sob o nome dos homens”, dando à palavra homoo sentido restrito do latim vir. Acrescenta que, consultando a Sagrada Escritura, “os argumentos dos bispos o fizeram reconhecer” essa falsa interpretação, o que “fez cessar a discussão”. Mas os autores da Grande Enciclopédia do século XVIII iriam explorar este pequeno incidente (que sequer consta dos cânones do Concílio) para deixar crer que se recusava à mulher a natureza...
- 5. Houve, daí em diante, numerosas ordens duplas na época, principalmente nos países anglo-saxões e na Espanha.
- 6. Iniciativa sem precedente, e também sem futuro, que consistia em fazer supervisionar, pelo rei, sua própria administração, dirigindo-se diretamente aos administradores: o rei enviava aos lugares os pesquisadores, unicamente encarregados de recolher as palavras das pessoas sem importância, que tinham motivos de reclamar dos agentes reais, e reformar assim, no local, os abusos cometidos; em outras palavras, era o caminho eficaz que remediou os defeitos do estatismo.
- 7. . Riché, Dhuoda Manuel pour mon fils, Paris, Ed. du Cerf, 1975.
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